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quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Crônica Oriental: Às margens do rio Mekong, choramos todos (Por Selenia Granja)

Enviado por Selenia Granja



Poeta: Carlos Morais José

Mekong

I

Na verdade não se sabe se é um rio ou hálito de montanhas, névoa exalada de arrozais, onde nasceram os búfalos e os nove sóis que ameaçaram queimar toda a terra. Não se sabe.

E não vale a pena perguntar ao pescador, à cana dúctil, à rede certa ou aos barcos que aparentemente o sulcam desde o mistério das origens. Que o silêncio é de água e pouco se extrai do seu ténue rumorejar.

Tementes vírgulas de um só texto, de uma húmida nação, a espraiar-se ciosa pelas terras, a acender florestas e aldeias de um só fôlego, quase um único parágrafo.

Zeloso pai, cuja fúria fértil temporariamente se inflama, desliza brando, açucarado, em morosa benevolência cor de andrajo.

O rio é um texto brando, pontuado aqui e ali de cálida teimosia.

II

Afagam o rio as mesmas mãos glúteas que há milénios amassam o matutino arroz acabado de aquecer. E ali permanecem esquecidas como se o tempo fosse a constante água e o futuro uma promessa sempre por acontecer.

E, nessa medida certeza, as mãos não pertencem ao rapaz acocorado, a rescender a lenha húmida. Nem àquela velha mulher de ombros finos que, um pouco mais adiante, alaga o rio com os olhos alucinados de lama rubra ou flores a descer o Mekong avermelhadas.

Tudo se equilibra e balança.

Fica somente um ponto negro na esfuziante madrugada, enquanto as últimas famílias emergem das casas vagarosas e se sentam na felicidade da partilha.

Só, ao longe, um povo, incessante, chora e eu choro também esta distância, insuperável hiância, o amargo translúcido dos passos, o pé ante pé do viadante, o obscuro templo onde se encerram as palavras.

Derramo, pois, nas margens do Mekong, as lágrimas de um alheio remorso nesta estranha busca de uma utilidade. Flutuam azeitonadas, discretas, ignoradas: as mãos glúteas do rapaz acocorado, os olhos rubros da velha mulher de ombros finos e o próprio rio não as vêem. Fogos-fátuos sobre as águas, em ardente deslizar, até ao grande mar, no Golfo de Tonquim.

III

Todos os rios são uma demanda, uma fértil incursão, incisões de água no corpo inerme da terra. E se no princípio se constata alguma crueldade, cedo a fúria se espanta e o amplexo abranda — Ó! Como ela o sabe receber e ele se molda às suas formas! — e retoma o ritmo de ancestrais e andróginas carícias.

Tudo pode agora dormir em paz.

IV

Lamento da acetinada terra. Que dizia: Salvé agora as esporádicas estrelas, amantes de meu amante, a pontilharem-lhe a pele de feéricas pedrarias onde não alcança o nublado cobertor. Fico quieta, prisioneira do meu imóvel destino, em extática contemplação dos seus folguedos.

Amo-te Mekong exactamente porque não és pardo e baço como eu e em ti se espelha tudo quanto é belo deste ou de outro mundo.

Bem sei que não me deixarás. Conheço desde o primeiro momento o teu carácter frívolo mas também o teu constante percurso e o apego que inevitavelmente me dedicas. Pode alguém invejar as excelsas qualidades de um amante?

V

Na curva do rio murmura uma dúvida.

Só o barco é a medida de todas as coisas ou assim nos ensinou o obscuro Grego de Éfeso e o Chinês que trocou o império por uma gruta, abandonando cinco mil caracteres na fronteira.

“Segue as pegadas do búfalo”, vocifera o velho encarquilhado mas a poeira oculta o invisível.

Na curva do rio murmura uma dúvida.

VI

De que serve ao rio ser gentes e animais, as montanhas febris e as hortas e mesmo um dicionário de temores? De que lhe serve ser serpente e alagar os campos, receber as afogueadas flores e com elas os desejos?

Cai a noite sobre o Mekong e o céu velado furta as formas, os caprichos, os sinais.

Cai a noite sobre o Mekong e sobrevém a dor do ópio de ontem, a saudade de um devir, crismado de palácios e ornado de jasmins.

O que sobra deste rio até a luz de novo colorir os sentidos de joviais imprecisões?

Um rumor, uma presença sombria,

Uma luz que guia, uma passagem,

O trago ávido de uma miragem.

VII

É um imenso tinir, tremor, rumorejar, a reunião que faz de ti “capitão das águas”.

Não lhe basta a espessa permanência: vibra e rutila, rufa tambores nas margens de açafrão, diferentes percussões nas múltiplas densidades da floresta. Vibra e rutila, rufa... vibra e rutila, rufa...

A água vem-te terna e turva, ofegante de carícias minerais. Ou então fazedora de paisagens, caída da montanha fria, a revelar o céu ou quem sobre ela se inclinar.

E sobre o Mekong morre ainda a dedicada chuva — e a humidade envolve o mundo — e há um sabor a regresso no rio à nossa volta.

Um povo estende os gestos como a luz se espreguiça e curvada adormece no seio escuro do Mekong.

Ceifeiro, remador, soldado, o rio te atormentará e à loucura te conduzirá.

“Capitão das águas”...

Major de homens...

VIII

Na outra margem, para lá da perceptível floresta, há abismos escancarados que rescendem ao mundo do princípio. Por lá, tépidos e furtivos, deslizam os tigres lázuli que um Argentino desvendou num cálido espelho e cresce uma flor cuja infusão assegura a vida eterna e protege do bocejo infinito.

Mas aqui, deste lado, um véu de tédio serenamente invoca a extrema e branca morte, como se o meu olhar devolvesse ao mundo a sua original falta de sentido. Tudo pára e tudo se sustém; só um suspiro leve e compassado, só um coração insiste em manter este equilíbrio de inutilidades.

IX

Volto-me para te abraçar

e a rocha recita um rio.

Chamamos-lhe o Mekong, onde naufrágios de poetas felinam na perenidade do azul.

Desliza doce,

a alagar suavemente

a terra num afago de vales

e timidez de florestas.

E, além e aqui, tudo abre e fertiliza.

Tenho, quando te abraço, meu amor,

uma visão do alcoólico Mekong

e da planície rouca das noites por adormecer,

a buscar o consolo das águas.

E vemos, meu amor, como o Mekong acaricia

a terra e no dorso oferecido dos búfalos

teremos a nossa primeira noite.

A incerteza tatuada

na pele lisa das margens,

ou a baloiçar

— dragões —,

fitas de luz a ondular

— oração —,

sobre as águas...

Tenho, quando abraço o rio,

uma visão do teu corpo, meu amor,

que confundo com inconstância e devir.

O caixeiro-viajante que traz

uma mala de medo

pendurada no fim

de seu longo e atrevido braço...

Há silêncio no corredor....


Selenia Granja. Publicado À Ilharga de Uma Geógrafa. Com autorização do autor. Poeta portugues Carlos Morais José.

De: Selenia Granja


terça-feira, 30 de agosto de 2011

Wal-Mart: O Custo Alto do Preço Baixo (2005) [Documentário completo com Legenda]


Faz algum tempo que venho juntando matérias para elaborar um artigo sobre o Wal-Mart, multinacional do imperialismo norte americano. Mas, enquanto não sai o texto, estou expondo uma postagem que encontrei a respeito da ação capitalista desta empresa pelo mundo. Ao mesmo tempo, estamos disponibilizando um ótimo documentário denominado de Wal-Mart: The High Cost of Low Price (Wal-Mart: O Custo Alto do Preço Baixo (2005)): Legendado.

Não deixe de conferir o texto e as denuncias que faz o vídeo.

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Quem frequenta as lojas Bompreço e Hiper Bompreço aqui no Nordeste talvez ainda não tenha percebido algumas de suas estratégias capitalistas superdiscretas: supérfluos à frente, brinquedos e doces na altura das crianças, mais supérfluos na imensa fila única (para que você fique bastante tempo olhando), promoções de chamariz que são compensadas nos altos preços dos demais produtos, cartão de crédito próprio com parcelamento sem juros, etc.

Só para se ter uma idéia da engenhosidade de suas táticas, a rede utiliza programas avançados de computador que, analisando criticamente informações de compras (coletadas por meio dos cartões "Bomclube", segundo alguns), estabelecem vários perfis de consumidores, e reorganizam as gôndolas, as decorações e até mesmo a iluminação para realçar ao máximo o consumo (funciona assim: você entra para comprar uma caneta e sai de lá carregado de compras).

Até aí, tudo bem, todos os que podem, fazem o mesmo... Quem está no mercado deve lançar mão de toda gama de recursos que a ciência da administração oferece. Mas precisamos conhecer um pouco mais a história da Wal-Mart (empresa dona do Bompreço desde 2004), para ter uma visão bem mais ampla da sujeira que a empresa e seus donos espalham pelo mundo.

O texto abaixo, de Pablo Villaça, sintetiza alguns fatos sobre a rede multinacional de supermercados, a partir do documentário "Wal-Mart: O Alto Custo do Baixo Preço" (2005), de Robert Greenwald:

"1) Sempre que uma nova unidade Wal-Mart é inaugurada em uma cidade de porte médio, a maior parte do comércio local é destruída em questão de dois ou três anos;

2) O salário pago aos empregados Wal-Mart é tão baixo que é considerado abaixo do nível de pobreza nos Estados Unidos;

3) Os gerentes da Wal-Mart recebem instruções para que seus funcionários trabalhem horas extras sem remuneração, sob pena de perderem o emprego - e são instruídos, também, a alterarem as horas trabalhadas no computador da empresa;

4) As mulheres recebem bem menos do que os homens e enfrentam imensas dificuldades para serem promovidas;

5) Para não ter que arcar com os custos de benefícios para os funcionários, a política da Wal-Mart é instruí-los a pedir auxílio médico, de alimentação e moradia ao Estado, deixando que o dinheiro do contribuinte pague as obrigações que deveriam ser bancadas pela empresa;

6) Os executivos da Wal-Mart chegam a gastar milhões de dólares anualmente para impedir que seus funcionários se sindicalizem - e não hesitam em demitir aqueles que pareçam minimamente interessados em lutar por seus direitos;

7) Com uma freqüência alarmante, lojas Wal-Mart são abertas com o auxílio de subsídios de governos e prefeituras, que deixam de investir em infra-estrutura, saúde e educação a fim de viabilizarem a entrada da empresa na economia local. Em troca, a Wal-Mart teoricamente se comprometeria a investir na comunidade. Na prática, isto não acontece: além de não investir um centavo na economia local, a nova loja geralmente é fechada quando o prazo do subsídio está para vencer e ela teria que passar a pagar 100% de impostos. Em muitos casos, uma nova filial é aberta no limite externo da cidade (para evitar as obrigações de impostos, etc.) e o imenso prédio antigo é deixado abandonado - e, como estes são enormes, é dificílimo encontrar quem os alugue ou compre. Atualmente, há 26.699.678 metros quadrados ocupados por lojas Wal-Mart abandonadas nos Estados Unidos;

8) A Wal-Mart já foi obrigada a pagar milhões de dólares em multas, nos últimos anos, por violações a diversas leis ambientais;

9) A Wal-Mart foi condenada a pagar outros tantos milhões de dólares por empregar imigrantes ilegais em suas lojas, pagando uma miséria a estes "funcionários";

10) As fábricas da Wal-Mart na China oferecem condições desumanas de trabalho aos seus funcionários, além de obrigá-los a pagar aluguel pelos dormitórios que oferecem aos empregados (mesmo que estes não residam ali). Além disso, os funcionários são obrigados pela gerência a mentir quando ocorrem as inspeções periódicas feitas para avaliar as condições de trabalho. E a remuneração? Menos de 3 dólares por dia (incluindo as várias horas extras diárias);

11) Por incrível que pareça, as condições são ainda piores nas fábricas de Bangladesh, onde as funcionárias são agredidas fisicamente por seus supervisores;

12) Depois de visitar várias fábricas da Wal-Mart nos países subdesenvolvidos (ou, como aprendi na minha época, de Terceiro Mundo), o responsável por supervisionar as condições de trabalho da empresa foi demitido justamente por relatar os absurdos que testemunhara;

13) Os cinco integrantes da família Walton (o fundador da Wal-Mart foi Sam Walton) possuem, juntos, um patrimônio acumulado de 102 bilhões de dólares: a viúva de Sam Walton tem 18 bilhões e cada um de seus quatro filhos possui, individualmente, mais de 18 bilhões de dólares. (São a família mais rica dos EUA.) Ainda assim, a empresa insiste em cortar verbas, promove um aumento anual de apenas 4% para seus funcionários e, como já dito, não oferece sequer um plano de saúde decente aos empregados;

14) Embora tenham investido centenas de milhões de dólares para construir uma mansão subterrânea depois do 11 de Setembro (o que permitiria que sobrevivessem ao "Apocalipse"), os membros da família Walton doaram menos de 1% de seu patrimônio para a caridade. A título de comparação, Bill Gates doou 58%;

15) Apesar de terem conduzido uma pesquisa interna que apontou que 80% dos crimes cometidos em suas lojas ocorriam no estacionamento, os executivos da Wal-Mart não investiram praticamente nada na segurança destes locais. O resultado é que centenas de crimes (de roubo de carros a estupros, passando por assassinatos, assaltos e tiroteios) ocorreram nos estacionamentos das lojas Wal-Mart apenas nos sete primeiros meses de 2005. Em outras palavras: a segurança dos clientes não parece ser prioridade para a loja.

O interessante, entre outras coisas, é que Greenwald busca entrevistar principalmente pessoas de tendência conservadora, republicana, a fim de evitar acusações de que seu documentário é mais uma "propaganda liberal" contra as corporações. As vítimas da empresa Wal-Mart vistas no filme são habitantes de Estados predominantemente de direita que exibem, orgulhosos, a bandeira norte-americana em seus jardins e a foto de Bush nas paredes de suas salas. É uma decisão no mínimo bastante estratégica (e inteligente) de Greenwald.

A propósito: há 152 unidades Wal-Mart no Brasil.

Evite-as."

Fonte: http://blogapendice.blogspot.com/2010/02/wal-mart.html


Wal-Mart: O Custo Alto do Preço Baixo (2005) [Documentário completo com Legendado]


Quem desejar baixar o documentário é só clicar aqui.


segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Federico Garcia Lorca: Teoria e Prática do Duende (Por Selenia Granja)

O texto abaixo faz parte das pesquisas realizadas por Selenia Granja. Sua capacidade de perscrutar o pensamento e conhecimento das ciências humanas, da cultura e da arte, acumuladas pela humanidade, produz resultados que são obras primas no campo do estudo e da pesquisa bibliográfica, identificando e reconhecendo matérias que “intriga o leitor a ir fundo [nas] referências” que disponibiliza. Neste sentido, surgiu a colaboração seguinte, quando no mês de junho do corrente ano, disponibilizou o texto que se destinou a comemorar o aniversário do Poeta espanhol Federico Garcia Lorca.

Não tivermos a oportunidade de expor-lo aqui com exclusividade, não obstante, o blog o povo na luta faz história, tem o imenso prazer de apresentar as nossas leitoras e leitores, o texto seguinte, enviado por Selenia Granja.


Por Selenia Granja.


Desde o ano de 1918, quando ingressei na Casa de Estudantes de Madri, até 1928, quando a abandonei, ao terminar meus estudos de Filosofia e Letras, ouvi naquele refinado salão, para onde acorria a velha aristocracia espanhola com o fim de corrigir sua frivolidade de praia francesa, cerca de mil conferências.

No desejo de ar e de sol, me aborreci tanto que, ao sair, me sentia coberto por uma leve cinza, quase a ponto de se transformar em pó-de-mico.

Não. Eu não gostaria que entrasse na sala essa terrível mosca do aborrecimento que costura todas as cabeças com um fio tênue de sono e põe nos olhos dos ouvintes pequenos tufos de pontas de alfinete.

De um modo simples, com o registro que em minha voz poética não tem luzes de madeiras, nem curvas de cicuta, nem ovelhas que subitamente são facas de ironias, vou procurar dar-lhes uma simples lição sobre o espírito oculto da dolorida Espanha.

Quem encontra-se na pele de touro que se estende entre os Júcar, Guadalete, Sil ou Pisuerga (não quero citar as torrentes junto às ondas cor de juba de leão que agitam o Plata), ouve-se dizer com certa freqüência: "Este tem muito duende". Manuel Torres, grande artista do povo andaluz, dizia a alguém que cantava: "Tu tens voz, conheces os estilos, mas jamais triunfarás, porque tu não tens duende".

Em toda Andaluzia, rocha de Jaén e búzio de Cádiz, as pessoas falam constantemente do duende e o descobrem naquilo que sai com instinto eficaz. O maravilhoso cantador El Lebrijano, criador da Debla, dizia: "Nos dias em que canto com duende não há quem possa comigo"; a velha bailarina cigana La Malena exclamou um dia, ao ouvir Brailowsky tocar um fragmento de Bach: "Olé! Isso tem duende!", e aborreceu-se com Glück, com Brahms e com Darius Milhaud. E Manuel Torres, o homem com maior cultura no sangue que conheci, disse, escutando o próprio Falla tocar seu Nocturno del Generalife, esta esplêndida frase: "Tudo o que tem sons negros tem duende". E não há nada mais verdadeiro.

Esses sons negros são o mistério, as raízes que penetram no limo que todos conhecemos, que todos ignoramos, mas de onde nos chega o que é substancial em arte. Sons negros, disse o homem popular da Espanha, e coincidiu com Goethe, que define o duende ao falar de Paganini, dizendo: "Poder misterioso que todos sentem e nenhum filósofo explica".

Assim pois o duende é um poder e não um obrar, é um lutar e não um pensar. Eu ouvi um velho violonista dizer: "O duende não está na garganta; o duende sobe por dentro a partir da planta dos pés". Ou seja, não é uma questão de faculdade, mas de verdadeiro estilo vivo; ou seja, de sangue; ou seja, de velhíssima cultura, de criação em ato.

Esse "poder misterioso que todos sentem e nenhum filósofo explica" é, em suma, o espírito da terra, o mesmo duende que abraçou o coração de Nietzsche, que o buscava em suas formas exteriores sobre a ponte Rialto ou na música de Bizet, sem encontrá-lo e sem saber que o duende que perseguia tinha saltado dos misteriosos gregos às bailarinas de Cádiz ou ao dionisíaco grito degolado da seguiriya de Silvério.

Assim, pois, não quero que ninguém confunda o duende com o demônio teológico da dúvida, ao qual Lutero, com um sentimento báquico, lançou um frasco de tinta em Nuremberg, nem com o diabo católico, destruidor e pouco inteligente, que se disfarça de cadela para entrar nos conventos, nem com o macaco falante que tem o espertalhão de

Cervantes, na comédia dos ciúmes e das selvas de Andaluzia.

Não. O duende de que falo, obscuro e estremecido, é descendente daquele alegríssimo demônio de Sócrates, mármore e sal que o arranhou indignado no dia em que tomou a cicuta, e do outro melancólico demoniozinho de Descartes, pequeno como amêndoa verde, que, farto de círculos e de linhas, saiu pelos canais para ouvir cantarem os marinheiros bêbados.

Todo homem, todo artista, dirá Nietzsche, cada degrau que sobe na torre de sua perfeição é às custas da luta que trava com um duende, não com um anjo, como se diz, nem com sua musa. É preciso fazer essa distinção fundamental para a raiz da obra.

O anjo guia e presenteia como São Rafael, defende e evita como São Miguel, e previne como São Gabriel.

O anjo deslumbra, mas voa sobre a cabeça do homem, está acima, derrama sua graça, e o homem, sem nenhum esforço, realiza sua obra, ou sua simpatia, ou sua dança. O anjo do caminho de Damasco ou o que entrou pelas fendas do balcãozinho de Assis, ou o que segue os passos de Enrique Susson, ordena, e não há maneira de recusar suas luzes, porque agita suas asas de aço no ambiente do predestinado.

A musa dita, e, em algumas ocasiões, sopra. Pode relativamente pouco, porque já está distante e tão cansada (eu a vi duas vezes) que teve que colocar meio coração de mármore. Os poetas de musa ouvem vozes e não sabem de onde elas vêm; são da musa que os alenta e às vezes os merenda. Como no caso de Apollinaire, grande poeta destruído pela horrível musa que foi pintada a seu lado pelo divino angélico Rousseau. A musa desperta a inteligência, traz paisagem de colunas e falso sabor de lauréis, e a inteligência é muitas vezes a inimiga da poesia, porque imita demasiadamente, porque eleva o poeta a um trono de agudas arestas e o faz esquecer que logo podem comê-lo as formigas ou pode cair-lhe na cabeça uma grande lagosta de arsênico, contra a qual nada podem as musas que há nos monóculos ou na rosa de tíbia laca do pequeno salão.

Anjo e musa vêm de fora; o anjo dá luzes e a musa dá formas (Hesíodo aprendeu com elas). Pão de ouro ou prega de túnicas, o poeta recebe normas no bosquezinho de lauréis. Ao contrário, o duende tem que ser despertado nas últimas moradas do sangue.

E rechaçar o anjo e dar um pontapé na musa, e perder o medo da fragrância de violetas que exala a poesia do século XVIII, e do grande telescópio em cujos cristais dorme a musa enferma de limites.

A verdadeira luta é com o duende.

Os caminhos para buscar a Deus são conhecidos, desde o modo bárbaro do eremita até o modo sutil do místico. Com uma torre como Santa Teresa, ou com três caminhos como São João da Cruz. E embora tenhamos que clamar com voz de Isaías: "Verdadeiramente és um Deus escondido", ao fim e ao cabo Deus manda ao que o busca seus primeiros espinhos de fogo.

Para buscar o duende não há mapa nem exercício. Só se sabe que ele queima o sangue como uma beberagem de vidros, que esgota, que rechaça toda a doce geometria aprendida, que rompe os estilos, que faz com que Goya, mestre nos cinzas, nos pratas e nos rosas da melhor pintura inglesa, pinte com os joelhos e com os punhos com horríveis negros de betume; ou que desnuda Mosén Cinto Verdaguer com o frio dos Pirineus, ou leva Jorge Manrique a esperar a morte no páramo de Ocaña, ou veste com uma roupa verde de saltimbanco o corpo delicado de Rimbaud, ou põe olhos de peixe morto no conde Lautréamont na madrugada do boulevard.

Os grandes artistas do sul da Espanha, ciganos ou flamengos, quer cantem, dancem ou toquem, sabem que não é possível nenhuma emoção sem a chegada do duende. Eles enganam as pessoas, e podem dar a sensação de duende sem que ele esteja lá, como as enganam todos os dias autores ou pintores ou modistas literários sem duende; mas basta atentar um pouco, e não se deixar levar pela indiferença, para descobrir o engodo e fazê-lo fugir com o seu tosco artifício.

Uma vez, a "cantadora" andaluza Pastora Pavón, A Menina dos Pentes, sombrio gênio hispânico, equivalente em capacidade de fantasia a Goya ou a Rafael o Galo, cantava em uma pequena taberna de Cádiz. Cantava com sua voz de sombra, com sua voz de estanho fundido, com sua voz coberta de musgo, e a enredava em seus cabelos ou a molhava em camomila ou a perdia entre estevais obscuros e longínquos. Mas nada; era inútil. Os ouvintes permaneciam calados.

Estava ali Ignacio Espeleta, formoso como uma tartaruga romana, a quem perguntaram uma vez: "Como não trabalhas?", e ele, com um sorriso digno de Argantônio, respondeu: "Como vou trabalhar se sou de Cádiz?"

Estava ali Eloísa, a quente aristocrata, rameira de Sevilla, descendente direta de Soledad Vargas, que em trinta não quis casar com um Rothschild porque não a igualava em sangue. Estavam ali os Floridas, que as pessoas crêem carniceiros, mas que na realidade são sacerdotes milenares que continuam sacrificando touros a Gereão, e em um canto, o imponente dono de gado Don Pablo Murube, com ar de máscara cretense. Pastora Pavón terminou de cantar em meio ao silêncio. Só, e com sarcasmo, um homem pequenino, desses homenzinhos bailarinos que saem de súbito das garrafas de aguardente, disse com voz muito baixa: "Viva Paris!", como se dissesse: "Aqui não nos importam as faculdades, nem a técnica, nem a maestria. Nos importa outra coisa."

Então A Menina dos Pentes levantou-se como uma louca, tronchada como uma carpideira medieval, e bebeu de um trago uma grande copo de cazalla como fogo, e sentou-se a cantar sem voz, sem alento, sem matizes, com a garganta abrasada, mas... com duende. Conseguira matar todo a estrutura da canção para dar lugar a um duende furioso e abrasador, amigo de ventos carregados de areia, que fazia com que os ouvintes rasgassem suas roupas quase com o mesmo ritmo com que as rasgam os negros antilhanos do rito, agrupados perante a imagem de Santa Bárbara.

A Menina dos Pentes teve que descarregar sua voz porque sabia que estava sendo escutada por gente estranha que não pedia formas, mas tutano de formas, música pura com o corpo exíguo para poder manter-se no ar. Teve que empobrecer em faculdades e em seguranças; quer dizer, teve que afastar a musa e ficar desamparada, para que seu duende viesse e se dignasse a lutar com os braços nus. E como cantou! Sua voz já não cantava, sua voz era um jorro de sangue dignificado por sua dor e por sua sinceridade, e se abria como uma mão de dez dedos pelos pés cravados, mas cheios de borrasca, de um Cristo de Juan de Juní.

A chegada do duende pressupõe sempre uma transformação radical em todas as formas sobre velhos planos, dá sensações de frescor totalmente inéditas, com uma qualidade de rosa recém criada, de milagre, que chega a produzir um entusiasmo quase religioso.

Em toda música árabe, dança, canção ou elegia, a chegada do duende é saudada com enérgicos "Alá, Alá!", "Deus, Deus!", tão próximos do "Olé!" dos touros que talvez seja o mesmo; e em todos os cantos do sul da Espanha a aparição do duende é seguida por sinceros gritos de "Viva Deus!", profundo, humano, terno grito de uma comunicação com Deus por meio dos cinco sentidos, graças ao duende que agita a voz e o corpo da bailarina, evasão real e poética deste mundo, tão pura como a conseguida pelo raríssimo poeta do século XVIII Pedro Soto de Rojas através de sete jardins, ou a de João Clímaco por uma estremecido acesso de pranto.

Naturalmente, quando essa evasão é alcançada todos sentem seus efeitos: o iniciado, vendo como o estilo vence uma matéria pobre, e o ignorante, no não sei quê de uma emoção autêntica. Há anos, em um concurso de baile de Jerez de la Frontera, quem ganhou o prêmio foi uma velha de oitenta anos, contra formosas mulheres e meninas com a cintura de água, pelo simples fato de levantar os braços, erguer a cabeça e dar um golpe com o pé sobre o tablado; mas na reunião de musas e de anjos que havia ali, belezas de forma e belezas de sorriso, tinha que ganhar e ganhou aquele duende moribundo que arrastava pelo chão suas asas de facas oxidadas.

Todas as artes são capazes de duende, mas onde ele encontra maior campo, como é natural, é na música, na dança e na poesia falada, já que elas necessitam de um corpo vivo que interprete, porque são formas que nascem e morrem de modo perpétuo e alçam seus contornos sobre um presente exato.

Muitas vezes o duende do músico passa para o duende do intérprete, e outras vezes, quando o músico ou o poeta não são tais, o duende do intérprete, e isto é interessante, cria uma nova maravilha que tem na aparência, e nada mais, a forma primitiva. Este é o caso da enduendada Eleonora Duse, que buscava obras fracassadas para fazê-las triunfar, graças ao que ela inventava, ou o caso de Paganini, descrito por Goethe, que fazia com que se ouvisse melodias profundas em verdadeiras vulgaridades, ou o caso de uma deliciosa garota do Porto de Santa Maria, que vi cantar e dançar a horrorosa canção italiana O Mari!, com uns ritmos, uns silêncios e uma intenção que faziam da bugiganga italiana uma dura serpente de ouro puro. O que acontece é que eles encontravam efetivamente alguma coisa nova, que não tinha nada a ver com a anterior, que punham sangue vivo e ciência em corpos vazios de expressão.

Todas as artes, e também os países, têm capacidade de duende, de anjo e de musa; e assim como a Alemanha tem, com exceções, musa, e a Itália tem permanentemente anjo, a Espanha é em todos os tempos movida pelo duende, como país de música e dança milenares, onde o duende espreme limões de madrugada, e como país de morte, como país aberto à morte.

Em todos os países a morte é um fim. Ela chega e fecham-se as cortinas. Na Espanha, não. Na Espanha elas são abertas. Muita gente vive ali entre suas paredes até o dia em que morre e é colocada ao sol. Um morto na Espanha está mais vivo como morto que em qualquer lugar do mundo: fere seu perfil como um fio de uma navalha bárbara. O chiste sobre a morte e sua contemplação silenciosa são familiares aos espanhóis. Desde O sonho das caveiras, de Quevedo, até o Bispo apodrecido, de Valdés Leal, e desde a Marbella do século XVII, morta de parto na metade do caminho, que diz:

La sangre de mis entrañas

cubriendo el caballo está.

Las patas de tu caballo

echan fuego de alquitrán... (1)

Ao jovem moço de Salamanca, morto pelo touro, que clama

Amigos, que yo me muero;

amigos, yo estoy muy malo.

Tres pañuelos tengo dentro

y este que meto son cuatro... (2)

Há uma balaustrada de flores de salitre, de onde assoma um povo de contempladores da morte, com versículos de Jeremias em seu lado mais áspero, ou com cipreste fragrante pelo lado mais lírico; mas um país onde o mais importante de tudo tem um último valor metálico de morte.

A faca e a roda do carro, e a navalha e as barbas pontudas dos pastores, e a lua despida, e a mosca, e as despensas úmidas, e os destroços, e os santos cobertos de renda, e a cal, e a linha cortante dos alpendres e dos mirantes têm na Espanha diminutas ervas de morte, alusões e vozes perceptíveis para um espírito alerta, que nos traz à memória o ar rígido de nosso próprio trânsito. Não é casualidade toda a arte espanhola ligada à nossa terra, cheia de cardos e de pedras definitivas, não é um exemplo isolado a lamentação de Pleberio ou as danças do maestro Josef María de Valdivielso, não é um acaso que de toda balada européia se destaque esta amada espanhola:

- Si tu eres mi linda amiga,

cómo no me miras, di?

- Ojos con que te miraba

a la sombra se los di.

- Si tú eres mi linda amiga,

cómo no me besas, di?

- Labios com que te besaba

a la tierra se los di.

- Si tú eres mi linda amiga,

cómo no me abrazas, di?

- Brazos com que te abrazaba,

de gusanos los cubrí. (3)

Nem é estranho que nos alvoreceres de nossa lírica soe esta canção:

Dentro del vergel

moriré,

dentro del rosal

matar me han.

Yo me hiba, mi madre,

las rosas coger,

hallara la muerte

dentro del vergel.

Yo me hiba, madre,

las rosas cortar,

hallara la muerte

dentro del rosal.

Dentro del vergel,

moriré,

dentro del rosal

matar me han. (4)


As cabeças geladas pela lua que Zurbarán pintou, o amarelo manteiga com o amarelo relâmpago de El Greco, o relato do padre Sigüenza, a obra inteira de Goya, a abside da igreja de El Escorial, toda a escultura policromada, a cripta dos Benavente em Medina de Rioseco, equivalem no culto às romarias de San Andrés de Teixido, onde os mortos tomam lugar na procissão, aos cantos fúnebres que cantam as mulheres de Astúrias com lanternas cheias de chamas na noite de novembro, ao canto e à dança da Sibila nas catedrais de Mallorca e Toledo, ao obscuro In Recort tortosino e aos inumeráveis ritos da Sexta-Feira Santa, que com a cultíssima festa dos touros formam o triunfo popular da morte espanhola. No mundo, somente o México pode ombrear com meu país.

Quando a musa vê a morte chegar fecha a porta ou ergue um plinto ou passeia uma urna e escreve um epitáfio com mão de cera, mas em seguida começa a rasgar seu laurel com um silêncio que vacila entre duas brisas. Sob o arco truncado da ode, ela junto com sentido fúnebre as flores exatas que pintaram os italianos do século XV e chama o seguro galo de Lucrécio para que espante sombras imprevistas.

Quando vê chegar a morte, o anjo voa em círculos lentos e tece com lágrimas de gelo e narciso a elegia que vimos tremer nas mãos de Keats, e nas de Villasandino, e nas de Herrera, e nas de Bécquer e nas de Juan Ramón Jiménez. Mas que horror o do anjo ao sentir uma aranha, por menor que ela seja, sobre seu terno pé rosado!

Ao contrário, o duende não chega se não vê possibilidade de morte, se não sabe que ela há de rondar sua casa, se não tem segurança de que há de balançar esses ramos que todos carregamos e que não têm, que não terão consolo.

Com ideia, com som ou com gesto, o duende gosta das bordas do poço em franca luta com o criador. Anjo e musa escapam com violino ou compasso, e o duende fere, e na cura dessa ferida, que não se fecha nunca, está o insólito, o inventado da obra de um homem.

A virtude mágica do poema consiste em estar sempre enduendado para batizar com água obscura a todos os que o vêem, porque com duende é mais fácil amar, compreender, e é certeza ser amado, ser compreendido, e essa luta pela expressão e pela comunicação da expressão adquire às vezes, em poesia, caracteres mortais.

Recordai o caso da flamenguíssima e enduendada Santa Teresa, flamenga não por dominar um touro furioso e dar-lhe três passes magníficos; não por enfrentar frei Juan de la Miseria nem por dar uma bofetada no Núncio de Sua Santidade, mas por ser uma das poucas criaturas cujo duende (não anjo, porque o anjo não ataca nunca) a transpassa com um dardo, querendo matá-la por ter roubado seu último segredo, a ponte sutil que une os cinco sentidos com esse centro em carne viva, em nuvem viva, em mar vivo, do Amor libertado do Tempo.

Valentíssima vencedora do duende, e um caso oposto ao de Felipe da áustria, que, ansiando buscar musa e anjo na teologia, viu-se aprisionado pelo duende dos ardores frios nessa obra de El Escorial, onde a geometria ombreia com o sonho e onde o duende põe máscara de musa para eterno castigo do grande rei.

Dissemos que o duende ama a orla, o limite, a ferida, e se aproxima dos lugares onde as formas se fundem em um anelo superior a suas expressões visíveis.

Na Espanha (como nos povos do Oriente, onde a dança é expressão religiosa) o duende tem um campo sem limites nos corpos das bailarinas de Cádiz, elogiadas por Marçal, nos peitos dos que cantam, elogiados por Juvenal, e em toda a liturgia dos touros, autêntico drama religioso onde, da mesma maneira que na missa, se adora e se sacrifica a um Deus.

É como se todos os duendes do mundo clássico se juntassem nessa festa perfeita, expoente da cultura e da grande sensibilidade de um povo que descobre no homem suas melhores iras, suas melhores bílis e seu melhor pranto. Nem no baile espanhol nem nos touros alguém se diverte; o duende se encarrega de fazer sofrer através do drama, em formas vivas, e prepara as escadas para uma evasão da realidade que circunda.

O duende opera sobre o corpo da bailarina como o vento sobre a areia. Transforma com mágico poder uma garota em paralítica da lua, ou enche de rubores adolescentes um velho roto que pede esmola pelas tendas de vinho, dá aos cabelos um cheiro de porto noturno, e em todo momento opera sobre os braços com expressões que são mães da dança de todos os tempos.

E é impossível que ele se repita, isso é muito interessante de sublinhar. O duende não se repete, como não se repetem as formas do mar na tempestade.

Nos touros ele adquire seus acentos mais impressionantes, porque tem que lutar, por um lado, com a morte, que pode destruí-lo, e por outro lado com a medida, base fundamental da festa.

O touro tem sua órbita: o toureiro, a sua, e entre órbita e órbita um ponto de perigo onde está o vértice do terrível jogo.

Pode-se ter musa com muleta e anjo com bandeirinhas e passar por bom toureiro, mas na faina de capa, com o touro limpo ainda de feridas, e no momento de matar, necessita-se da ajuda do duende para acertar no cravo da verdade artística.

O toureiro que assusta o público na praça por sua temeridade não toureia, mas encontra-se neste plano ridículo, ao alcance de qualquer homem, de jogar com a vida; ao contrário, o toureiro mordido pelo duende dá uma lição de música pitagórica e faz esquecer que arrisca constantemente o coração sobre os cornos.

Lagartijo com seu duende romano, Joselito com seu duende judeu, Belmonte com seu duende barroco e Cagancho com seu duende cigano, ensinam, desde o crepúsculo do anel, a poetas, pintores e músicos, quatro grandes caminhos da tradição espanhola.

A Espanha é o único país onde a morte é o espetáculo nacional, onde a morte toca longos clarins à chegada das primaveras, e sua arte está sempre regida por um duende agudo que lhe dá sua diferença e sua qualidade de invenção.

O duende que enche de sangue, pela primeira vez na escultura, as faces dos santos do mestre Mateo de Compostela, é o mesmo que faz São João da Cruz gemer ou queima ninfas nuas com os sonetos religiosos de Lope.

O duende que levanta a torre de Sahagún ou trabalha ladrilhos quentes em Calatayud ou Teruel é o mesmo que rasga as nuvens de El Greco e põe a rodar a pontapés os aguazis de Quevedo e as quimeras de Goya.

Quando chove faz surgir Velázquez enduendado, em segredo, por trás de seus cinzas monárquicos; quando neva faz Herrera sair nu para demonstrar que o frio não mata; quando arde, põe em suas chamas Berruguete e o faz inventar um novo espaço para a escultura.

A musa de Góngora e o anjo de Garcilaso hão de soltar a guirlanda de laurel quando passa o duende de São João da Cruz, quando

el ciervo vulnerado

por el otero asoma. (5)

A musa de Gonzalo de Berceo e o anjo do Arcipreste de Hita devem separar-se para dar lugar a Jorge Manrique, quando chega ferido de morte às portas do castelo de Belmonte. A musa de Gregoria Hernández e o anjo de José de Mora devem separar-se para que cruze o duende que chora lágrimas de sangue de Mena e o duende com cabeça de touro de Martínez Montañes, como a melancólica musa da Cataluña e o anjo molhado de Galicia olham, com amoroso assombro, o duende de Castilla, tão distante do pão quente e da dulcíssima vaca que pasta com normas de céu varrido e terra seca.

Duende de Quevedo e duende de Cervantes, com verdes anêmonas de fósforo um, e flores de gesso de Ruidera o outro, coroam o retábulo do duende da Espanha.

Cada arte tem, como é natural, um duende de modo e forma distintos, mas todas unem suas raízes em um ponto de onde manam os sons negros de Manuel Torres, matéria última e fundo comum incontrolável e estremecido de lenho, som, tela e vocábulo.

Sons negros por trás dos quais estão já em terna intimidade os vulcões, as formigas, os zéfiros e a grande noite apertando a cintura com a Via Láctea.




Por Selenia Granja e Luis Carlos.

LITERATURA DE CORDEL E LITERATURA DE FOLHEITO


Por Luis Carlos.

Carlos Drummond de Andrade, na sua crônica Leandro, o Poeta, publicada no Jornal do Brasil de 9 de Setembro de 1976, acentua: “ Em 1913, certamente mal informados, 39 escritores, de um total de 173, elegeram por maioria relativa Olavo Bilac príncipe dos poetas brasileiros. Atribuo o resultado a má informação porque o título, a ser concedido, só podia caber a Leandro Gomes de Barros, nome desconhecido no Rio de Janeiro, local da eleição promovida pela revista Fon-Fon!, mas, vastamente popular no norte do país, onde suas obras alcançaram divulgação jamais sonhada pelo autor do ‘ ouvir estrelas”. (...) E aqui desfaço a perplexidade que algum leitor não familiarizado com o assunto estará sentindo ao ver defrontados os nomes de Olavo Bilac e Leandro Gomes de Barros.

Um é Poeta erudito, produto de cultura urbana e burguesia média; o outro, planta sertaneja vicejando a margem do cangaço, da seca e da pobreza. Aquele tinha livros admirados nas rodas sociais, e os salões o recebia com flores. Este espalhava seus versos em folhetos de Cordel, de papel ordinário, com xilogravuras toscas, vendidos nas feiras a um público de alpercatas ou de pés no chão..” E, continua Drummond mostrando o alcance dessa literatura singular, que por sua penetração, representa significativa parcela do nosso patrimônio cultural: “ A poesia parnasiana de Bilac, bela e suntuosa, correspondia a uma zona limitada de bem estar social, bebia inspiração européia e, mesmo quando se debruçava sobre temas brasileiros, só era captada pela elite que comandava o sistema de poder político, econômico e mundano. A de Leandro, pobre de rítimos, isenta de lavores musicais, sem apoio livresco, era a que tocava milhares de brasileiros humildes, ainda mais simples que o poeta, e necessitados de ver convertida e sublimada em canto a mesquinharia da vida. (...)” E conclui: “ Não foi príncipe de poetas do asfalto, mas foi, no julgamento do povo, rei da poesia do sertão e do Brasil em estado puro”.1

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O Reino da Estupidez, de Francisco Mello Franco, Edição de 1818, Paris, Officina de Bobbé.

O texto original (parte da introdução do livro):

VA oh Poema, não digo discorrei', pelo Universo, porque sei que estás escripto em Portuguez, mas ao menos corre as mãos de todos esses que compõem a Universidade. Eu te vaticino desde já huma desgraçada sorte: serás praguejado, e por muitos reduzido a cinzas, que irão até lançar-te no Mondego, como cousa contagiosa. Não esmoreças, que entre esses algum haverá, ainda que poucos, que folguem de vêr a verdade com os seus próprios vestidos: não receies penetrar os mesmos claustros: ahi he que te prognostico os maiores desprezos: soffre com paciência, que o teu fim he só de fazer ver a verdade afirma pois a esses homens, que o teu Autor venera os seus santos Instituidores; que só desejara, que aqueles que se prezão ao de ser seus filhos, fossem vivas copias suas, porque então não chegaria a muitas dúzias em Portugal. Dize-lhes que o que mais o aflige, he ver, que os que por voto devem ser pobres, humildes, e castos, são os mais regalados, soberbos, e libidinosos, a quem custa muito cumprir os votos que fazem...

INTRODUÇÃO

Para a abordagem de nosso tema, vamos tomar como base o livro de Márcia Abreu, denominado de “História de Cordéis e Folhetos”, em especial, o Capitulo intitulado de “Formação da Poética Nordestina”.

O objetivo geral do texto de Márcia Abreu é identificar e reconhecer, em principio, a diferença entre a literatura de cordel portuguesa e a literatura de folhetos, tendo em vista essa última manifestação literária, que se constitui como objeto focal de análise e estudo. A matéria prima, por assim dizer, do método de pesquisa, é o processo de formação das sessões de cantorias e os folhetos publicados. O recorte temporal da pesquisa centra-se entre os finais do século XIX e os últimos anos da década de 1920. (pag. 73).

A hipótese levantada é que a literatura de folheto “parece ter iniciado seu processo de definição no espaço oral, muito antes que a impressão fosse possível”.

Mas, tal afirmação tem parecer. É que a tradição positivista do registro documental, visando a comprovação de uma verdade científica, faz com que haja dúvida sobre o inicio do surgimento dos folhetos, uma vez que, “parece ter iniciado” naquele referido espaço, por esse motivo: “não restaram registros dessa prática nos primeiros séculos da história do Brasil”.

Na apreciação da autora, somente com “algumas notícias sobre cantorias oitocentistas”, conservadas a partir de “informações e trechos de poemas guardados na memória de antigos poetas, entrevistados por folcloristas ou reconstituições feitas em folhetos”, é que se comprova a origem do fato cultura da poética nordestina. Mesmo, assim, com ressalvas: “Se não são registros inteiramente confiáveis, sujeitos aos deslizes da memória, carregam consigo uma marca fundamental: o caráter fortemente oral dessa produção, tanto no que tange à composição quanto à transmissão”.

PRESUPOSTOS HISTÓRICOS DO SURGIMENTO DA LITERATURA DE FOLHETO

O aspecto oral da produção, transmitido pela memória (mesmo com seus deslizes), é, apesar do ceticismo, levado em consideração [penso que haveria melhores maneiras de ter se fundamentar a justificativa da questão, mas, mas, etc...] para a origem da literatura de folheto, ou seja, seu pressuposto mais próximo, isto é, a cantoria.

Seguindo o desenvolvimento das considerações, relativas aos pressupostos históricos da Literatura de Cordel, pode-se dizer, através de Márcia Abreu, que a:

“(...) tradição reservou o lugar de fundador a Agostinho Nunes da Costa, que viveu entre 1797 e 1858. Provavelmente já havia cantadores antes dele, mas seu nome permaneceu como o de um iniciador, ou, conforme Átila de Almeida, “no princípio não foi o caos, foi Agostinho Nunes da Costa”. (Pag. XX).

Além de Agostinho, outros ligados ao chamado “grupo de Teixeira” “foram responsáveis pelas primeiras composições de que se conhecem os autores”. Como iremos fazer menção a frente, podemos adiantar que, foi a partir deste grupo que surgiram os primeiros poetas que imprimiram folhetos, como Leandro Gomes de Barros e Francisco das Chagas Batista, pioneiros na impressão de folhetos.

As composições iniciais das cantorias, em linha gerais, podem ser apreciadas pelo conteúdo e pela forma, antes de migra para a impressão em folhetos (momento em que a escrita impressa passa a ser um fato comprobatório [parece-me a divisão positivista de Pré-História e História a partir da escrita]). Mas, enfim, vamos a conteúdo e forma das composições cantadas, em outras palavras, a análise estrutural da construção dos versos e suas características dentro do gênero.

As pelejas, assim foram chamadas, pelo teor de disputa e enfrentamento entre dois cantadores, cada um defendendo e improvisando sua cantoria. Estruturalmente, percebem-se os versos curtos, as rimas, o ritmo e a musicalidade que há na narrativa poética. No seu interior, é característico o uso de representação oralizada por parte do povo da (amontei no meu cavalo/a galope na carreira/fui acudir ao chamado/do seu Manoel Cabeceira...), bem como, as palavras características de quem lida com o gado e a vida rural. Segundo, par a autora, essas pelejas ou desafios só têm fim quando um dos oponentes não tem mais argumentos para prosseguir na cantoria.

Ao se tratar de estrutura, observa-se, também, que além dos motes e versaletes, os poemas eram compostos por quadras setessilábicas, com rimas do tipo ABCB, típicas da literatura lusitana, que ao seres cantadas e, principalmente, impressas, apresentam-se na poética do texto, a organização em formato fixo que ao passar do tempo passaram a ser feitos por sextilhas. Tal aspecto, pode-se ver na maioria dos folhetos de cordéis que encontramos por ai nas bancas de revistas e feiras literárias.

O foco da narrativa, da qual se centram as pelejas, variam conforme as situações e o tema escolhido pelos cantadores, pois, há várias subdivisões temáticas, como “o ciclo do boi”: várias histórias em que o boi ganha destaque, ocupando lugar do narrador. Para melhor explicar sobre esse tipo de narrativa, Márcia Abreu aborda que,

“O animal é um simples narrador onisciente, que conhece o que se passa nas fazendas, as opiniões a seu respeito, os preparativos para sua captura, o pensamento de seus algozes. Ele nomeia os lugares por onde passou e cada um dos vaqueiros que saíram em seu calço, embora o interesse maior fosse pelos animais e não pelos homens.” (Márcia Abreu, p.81)

Subtende-se então, que o “Ciclo do boi”, seja uma criação local, marcado por uma época em que a atividade econômica de destaque era a pecuária, sobre a qual permaneceu por um longo tempo. Com isso, alguns estudos apontam que as atividades dos vaqueiros e as fugas do gado, eram motivos de criações de jogos, ditos populares, poemas de improvisos e as pelejas. Além das festas que conhecemos até hoje, como as cavalhadas, rodeios e vaquejadas. Festas estas, espalhadas por todo o Brasil, em especial no nordeste.

Há também “A peleja da Alma”, criada por Silvino Pirauá de Lima, que além de narrar a história de uma alma, que reluta entre demônios e forças divinas até chegar à sua salvação, é, também, constituída de um formato, aparentemente desconexo e desestrutural, em relação às outras pelejas. Entretanto, nesse formato poético há uma lógica em que o autor utiliza para construir as estrofes. Esse tipo de peleja não é fácil de ser encontrado, pois, não prevaleceu por muito tempo devido à dificuldade de se memorizar para ser cantada. Exatamente por causa dessa estrutura de variações e não aquelas em que consistem formas fixas, como as sextilhas e quadras.

LITERATURA DE FOLHETO

Apesar do batismo acadêmico de Literatura de Cordel, que remonta a década de 60/70, do século XX, os mais antigos poetas populares denominavam sua arte como Literatura de Folhetos.

“Antes de compreendermos corno se constitui essa poética, é indispensável entendermos o uso da nomenclatura: literatura de cordel. Definição implantada no Brasil entre as décadas de 60 a 70, a denominado literatura de cordel passou a ser usada com o objetivo de equiparar as origens do folheto nordestino às da literatura de cordel portuguesa”. (Santos, 2011:17).

Os tribunais do saber acadêmico, que têm o hábito de decidir sobre a vida e a morte do pensamento e conhecimento, julga que o conceito de Literatura de Cordel era usado já de longas datas em Portugal, enquanto que no Brasil, originalmente, se convulsionou a chamar-se de Literatura de folheto, constatação que corresponde a fatos históricos. Contudo (Márcia Abreu), os povos indígenas e negros, também, conheceram formas de narrativas, poemas, charadas e disputas orais. Mas, de uma forma ou de outra, se pode dizer, que do ponto de vista do conteúdo medieval, não é originária do Nordeste brasileiro (Idem.pag. 73).

No seu invólucro europeu, a Literatura de Cordel era uma forma de adaptação das histórias de cavalarias, bem como, de personagens ligados às cortes e realezas (aos valores da classe senhorial). Após adaptadas em livretos, eram difundidas entre as camadas excluídas da sociedade, de modo a criar entre os camponeses “iletrados”, as imagens da classe dominante, como a única que devia governar em nome de todos (mera ilusão de ótica, ou seja, meros sinais ideológicos).

“Na Idade Média, quando ler e escrever eram privilégio de monges e de poucos nobres, os fatos e acontecimentos mais importantes da vida social perpetuavam-se pela poesia popular. E então era os Castelos sombrios dos senhores feudais o palco comum em que se cantavam os feitos, a bravura e o amor dos cavaleiros da sociedade medieval. Portanto os inícios da literatura de cordel estão ligados à divulgação de histórias tradicionais, narrativas de velhas épocas, que a memória popular foi conservando e transmitindo: são chamados romances ou novelas de cavalaria, de amor, de narrativas de guerra ou viagens ou conquistas marítimas. Mas ao mesmo tempo, ou quase ao mesmo tempo, também começou a aparecer no mesmo tipo de poesia e de apresentação, a descrição de fatos recentes, de acontecimentos sociais que prendiam a atenção da população”.2

No Brasil, sua translação foi paulatina, seguiu um processo quantitativo, historicamente falando, a partir da tradição oral que permeou a vida das classes sociais excluídas (escravos, índios, brancos pobres), em detrimentos da cultura letrada, antes mesmo da imprensa ser um meio de suporte para vinculação do saber e do poder dominante. A inter-relação entre uma e outra, fez com que as primeiras classes desenvolvessem de modo qualitativo da cantoria, na qual narrativa, poemas, charadas e disputas se mantiveram através do único suporte que o povo desenvolveu de maneira exemplar: a memória oralizada (como já foi abordado a cima).

O povo tem sabedoria e a classe dominante saber. Enquanto esta última ia tento acesso ao pensamento e conhecimento através dos meios escritos dos livros e jornais (chegados aqui pelas caravelas e depois pela imprensa e outros suportes mantenedores da cultura dominante), o povo trabalhador - por intermédio da memória e das narrativas orais (que se constitui como uma forma de leitura de mundo, formada de conteúdos poéticos) - foi vendo e traduzindo o mundo social através das cantorias. Isso só foi possível porque:

“(...) Em culturas letradas, a possibilidade de conservar conteúdos por intermédio de textos fixados no papel faz com que a repetição seja desvalorizada e a originalidade, incentivada. Não é preciso guardar cuidadosamente uma história, um verso bem feito, já que eles estarão para sempre presentes em algum livro, em alguma biblioteca. Já em uma cultura oral, a conservação de produções intelectuais depende exclusivamente da memória, criando uma propensão ao conservadorismo, ao tradicionalismo. Não se trata, obviamente, de uma aversão total a qualquer novidade. A “originalidade” reside na maneira com que se manejam velhos temas, com que se re-ordena o material, muito mais do que na superação de velhas formas e temas pela introdução de elementos desconhecidos. Situação semelhante se verifica em culturas de oralidade residual, nas quais a escrita, embora conhecida, não é franqueada a grande parte da comunidade, como era o caso do nordeste no começo do século”.

Em sua totalidade, os cantadores eram trabalhadores e filhos de trabalhares do campo ou de pequenos representantes da classe media que propagavam suas história e modos de verem a sociedade brasileira pelas residências urbanas, festejos privados, festas públicas, feiras e casas-grandes. Este aspecto é completamente diferente daquele que se desenvolveu na Europa, não só do ponto de vista sociológico, como pelas temáticas abordadas (identidades pessoais, a natureza, comportamento moral, cor e origem social, aspectos físicos, fatos sociais, históricos e geográficos, mitologia greco-romana, histórias sagradas, animais típicos da região nordeste, vaqueiros, dentre outros aspectos da vida em sociedade. Tudo isso, completamente diferente das histórias da classe senhorial portuguesa, típicas dos cancioneiros).

Por volta do final dos anos oitocentos, segundo Márcia Abreu (1999:91):

“(...) parte do universo poético das cantorias começa a ganhar forma impressa, guardando entretanto fortes marcas de oralidade. Não se sabem quem foi o primeiro autor a imprimir seus poemas mas, seguramente, Leandro Gomes de Barros foi o responsável pelo início da publicação sistemática”.

Assim como os cantadores, os poetas populares vinham da zona rural ou eram filhos de pequenos agricultores rurais e trabalhadores assalariados. Informa-nos ainda a autora que:

“Alguns iniciaram a vida profissional como operários, vendedores, agricultores, almocreves, mas, assim que conseguiram editar e vender folhetos, abandonaram o antigo ofício, passando a ser dedicar apenas ao trabalho com os versos”.

“Para dedicar-se à poesia, abandonaram o campo e estabeleceram-se em capitais ou em grandes cidades, onde compunham, editavam e vendiam suas obras, vivendo exclusivamente de seu trabalho poético. Suas casas eram pontos de vendas privilegiados. Leandro Gomes de Barros, por exemplo, anunciava seu endereço nas capas e contracapas de seus folhetos como local de venda”.

Segundo as informações da autora citada, no tocante a formação educacional (pag. 93), a maioria dos poetas tinha “(...) pouca ou nenhuma instrução formal. Alguns eram autodidatas, outros aprenderam a ler com parentes e conhecidos.”. Para ilustrar esta afirmação, conta duas histórias de vidas, nas quais diz:

“Francisco das Chagas Batista, que cursou uma escola noturna, não chegou a ser uma exceção pois, ao tomar assento em bancos escolares, já havia publicado vários folhetos. João Martins de Athayde, que aprendeu a ler sozinho, resume bem a situação dos poetas populares ao dizer: Sou um analfabeto que sempre viveu das letras... Cheguei a ter algum recurso, mas tudo saído das letras”.

A lenda de que a História dos Folhetos se iniciou em cordões esticados nas feiras traz certa lenda, porque, os meios de divulgação e comercialização dos folhetos eram diversos:

“Grande parte do comércio era realizado em viagens feitas pelos autores ou por revendedores, percorrendo fazendas e vilarejos, vendendo trabalhos próprios e de colegas, distribuindo folhetos tanto pelas cidades quanto na região agrícola. Na zona rural, eram apreciados em engenhos, pequenas propriedades e em fazendas de gado, não só pelos trabalhadores mas também pelos proprietários das terras que patrocinavam cantorias e liam – ou escutavam ler – as histórias”.

A partir dos anos 20 em diante, a Literatura de Folhetos tomou outros rumos, sendo apenas superada pelos preconceitos dos poetas “acadêmicos” e sabedores eruditos das universidades da vida (exceção de Carlos Drummond de Andrade e outros poucos). Apesar disso, a sabedoria popular se perpetuou como meio de leitura de mundo social dos poetas e das camadas trabalhadoras brasileiras.

“Sem a intermediação da escola e da crítica literária – encarregadas de transmitir os “clássicos” ao longo das gerações – sem bibliotecas e acervos interessados em colecioná-los, os folhetos dependiam da aceitação do público para que permanecessem. Um folheto mal aceito não vendia e desaparecia, já que não seria memorizado nem tampouco reeditado”.

Márcia Abreu, ao fazer uma comparação entre a literatura de folheto do nordeste e a literatura portuguesa de cordel, sintetiza e conclui nossa exposição e apreciação do tema, em linha gerias, dizendo que o seguinte:

“Assim, entre o final do século XIX e os anos 20, a literatura de folhetos consolida-se: definem-se as características gráficas, o processo de composição, edição e comercialização e constitui-se um público para essa literatura. Nada nesse processo parece lembrar a literatura de cordel portuguesa. Aqui, haviam autores que viviam de compor e vender versos; lá, existiam adaptadores de textos de sucesso. Aqui, os autores e parcelas significativa do público pertenciam às camadas populares; lá, os textos dirigiam-se ao conjunto da sociedade. Aqui, os folhetos guardavam fortes vínculos com a tradição oral, no interior da qual criaram sua maneira de fazer versos; lá, as matrizes das quais se extraíam os cordéis pertenciam, de longa data, à cultura escrita. Aqui, boa parte dos folhetos tematizavam o cotidiano nordestino; lá, interessavam mais as vidas de nobres e cavaleiros. Aqui, os poetas eram proprietários de sua obra. Podendo vendê-la a editores, que por sua vez também eram autores de folhetos, lá, os editores trabalhavam fundamentalmente com obras de domínio público” (Pag. 105).

Bibliografia:

Márcia Abreu. História de Cordéis e Folhetos. Mercado das Letras, Campinas/SP, 1999.

Referencias:

1. http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20091026125248AAa1hP4

2. http://www.potyguar.com.br/literaturadecordel/index_arquivos/leandrogomesdebarros.htm

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