Por Luis Carlos
Na perspectiva da conceptualização de um aparelho teórico se tomará como ponto de partida, inicialmente, Corrêa (1989, p.11-12), e em especial, as considerações do que vem a ser o espaço urbano. Para este geógrafo, o espaço urbano é um produto resultante das ações social-econômicas (ligadas aos proprietários dos meios de produção, proprietários fundiários e promotores imobiliários), político-institucionais (inerente ao Estado) e os grupos sociais excluídos – que acumuladas através do tempo constituíram o espaço físico. A ação destes agentes, segundo Corrêa é complexa, derivada da dinâmica de acumulação de capital e das necessidades mutáveis de reprodução das relações de produção, assim como, dos conflitos de classe que dela emergem. Assim, estas ações provocam um constante processo de reorganização espacial que se realiza através da incorporação de novas áreas ao espaço urbano, densificação do uso do solo, deterioração de certas áreas, renovação urbana, relocação diferenciada da infra-estrutura e mudança do conteúdo social e econômico de determinadas áreas da cidade. E completa ao dizer que:
É preciso considerar, entretanto que, a cada transformação do espaço urbano, este se mantém simultaneamente fragmentado e articulado, reflexo e condicionante social, ainda que as formas espaciais e suas funções tenham mudado. A desigualdade sócio-espacial também não desaparece: o equilíbrio social e da organização espacial não passa de um discurso tecnocrático, impregnado de ideologia. (CORRÊA, 1989, p.11-12)
Os processos sociais ligados aos diversos agentes, que pari passu foram configurando as formas e funções na organização espacial, se apresentam diferenciados na atualidade através de um modo determinado de apropriação do uso do solo no espaço urbano da cidade. E em sendo assim, os diferentes usos do solo no espaço urbano da cidade são, em linhas gerais, classificados por Corrêa (op.Cit p. 07): “(...) como o centro da cidade, local de concentração de atividades comerciais, de serviços e de gestão, áreas industriais, áreas residenciais distintas em termos de forma e conteúdo social, de lazer e, entre outras, aquelas de reservas para futura expansão”.
Tais tipos de espaços são fragmentados e articulados, refletem a sociedade capitalista, possuem um condicionamento social, um conjunto de símbolo e um campo de luta. Se de um lado o espaço urbano se apresenta (pela à ação histórica dos processos sociais) fragmentado na espacialidade da cidade de outro é simultaneamente articulado, pois, “cada uma de suas partes mantém relações espaciais com as demais, ainda que de intensidade muito variável”. (op.Cit. p. 07). É um reflexo da sociedade porque “o espaço da cidade capitalista é fortemente dividido em áreas residenciais segregadas, refletindo por sua vez a complexa estrutura social em classes” (idem p. 08). Seu condicionamento “se dá através do papel que as obras fixadas pelo homem, as formas espaciais, desempenham na reprodução das condições de produção e das relações de produção”.
Se a cidade é o lugar onde as diversas classes sociais vivem e se reproduzem, daí advier simbolismos contraditórios e lutas sociais. Neste sentido, o simbolismo emerge pelo fato dele “envolver o quotidiano e o futuro próximo, bem como, as crenças, valores e mitos criados no bojo da sociedade de classes e, em parte, projetados nas formas espaciais: monumentos, lugares sagrados, uma rua especial, etc.”. Mas como o espaço é profundamente desigual, implica-se que “o quotidiano e o futuro próximo achem-se enquadrados num contexto de fragmentação desigual do espaço, levando aos conflitos sociais, como as greves operárias, as barricadas e os movimentos sociais” (idem. P. 09).
1.1. O CONCEITO DE SEGREGAÇÃO SÓCIO-ESPACIAL:
São vários os pontos de vista a respeito do referido conceito. Não se vai aqui entrar nas nuanças destes debates, mas, procurar abordar apenas os pontos convergentes sobre a segregação residencial a partir de Castells, Corrêa (1989), Sousa (2005) Lefébvre e Harvey (Apud SOGAME, 2001).
Uma das primeiras definições formulada do conceito de segregação espacial, segundo Corrêa (op. cit p. 59-60), veio da Escola de Chicago, Robert Park e depois Mckenzie, que atribuíram aquele conceito “uma concentração de tipo de população dentro de um dado território”. Sua “expressão espacial” seria uma “área natural”. Essa expressão é definida, por Zorbaugh, como: “uma área geográfica caracterizada pelo individualismo físico e cultural”.
A explicação para o surgimento desta ‘área geográfica’ seria o “processo de competição impessoal que gera espaços de dominação dos diferentes grupos sociais, replicando ao nível da cidade processos que ocorrem no mundo”.
Mas tarde as “áreas naturais” de raízes naturalistas aparecem parcialmente libertadas deste enfoque teórico como “áreas sociais”. Partindo de Shevky e Bell, diz Corrêa (idem p. 60-61), a expressão espacial das “áreas sociais” é qualificada como “(...) áreas marcadas pela tendência à uniformidade da população em termo de três conjuntos de características: status sócio-econômico (renda, status ocupacional, instrução etc.,), urbanização (...) e etnia”. De modo mais especifico, entendem que: “A uniformidade de tais características origina áreas sociais, isto é, bairros homogêneos, segregados”. Neste sentido, se tem como exemplo os “(...) bairros operários com modestas residências unifamiliares, de empregados do setor terciários residindo em edifícios de apartamentos, de diretores de empresas em suas residências suntuosas, etc.” (idem, p. 60),
A definição de “áreas sociais” transposta para o conceito geográfico de áreas residenciais segregadas e/ou segregação sócio-espacial de um lado, e de outro, como sendo constituídas de uma diferenciação populacional em termos sócio-econômico dos grupos sociais ou de classes sociais, de etnia ou faixa etária, são dois lados de uma mesma moeda que aproxima os estudiosos.
LEFBVRE (1983), em “La revolucion urbana” (apud SOGAME, 2001, P.96), explica aquela diferenciação entre as áreas sociais, que se observa no espaço urbano, como sendo uma concepção que traz “à idéia de relações percebidas ou concebidas” 1. Já a separação e a segregação seriam o “rompimento das relações”. Quanto à segregação, propriamente dita, seria para Lefbvre o “resultado de uma estratégia de extrema diferenciação social que conduz á formação de espaços homogêneos”. Segundo Sogame, que interpreta as considerações de Lèfbvre, se de um lado a existência da diferenciação permite a troca de informações, o intercâmbio entre os diferentes e as diferença (pessoas e lugares), de outro, a segregação propicia o inverso, conduzindo a um espaço homogêneo e fragmentado que impossibilita a comunicação e o encontro. Em suma, no que se diz respeito a uma conceituação mais precisa de segregação, Lèfbvre nos indica que: “Os lugares segregados da cidade moderna não são justapostos, são hierárquicos, e representam espacialmente a hierarquia econômica e social, setores dominantes e setores dominados”. (apud. Sogame. Idem. P. 98).
Em Castells (1983, p. 210) se pode extrair de A Questão Urbana algumas observações importante que explicam tanto a “distribuição das residências pelo espaço” quanto à segregação, em especial. Segundo Castells, a distribuição “das moradias e de suas populações estão diretamente relacionadas aos tipos e níveis das instalações e funções residenciais que se liga a elas”. A “distribuição dos locais de residências” está submetida aos ditames das “ leis da distribuição dos produtos” (habitação ou moradia), que segundo o autor, “opera os reagrupamentos em função da capacidade social dos indivíduos, isto é, no sistema capitalista, em função de suas rendas, de seus status profissionais, de seu nível de instrução, de filiação étnica, da fase do ciclo da vida etc.”. Por isso, afirma existir “uma estratificação urbana” que corresponderia “ao sistema de estratificação social”, condicionada pelo nível de distribuição/apropriação dos produtos do sistema social. Depois de traçar esta argumentação, que esclarece as formas de distribuição e os conteúdos das residências pelo espaço, remete-se ao entendimento conceitual que possui da “segregação urbana”: “entendemos por segregação urbana, a tendência á organização do espaço em zonas de forte homogeneidade social interna e com intensa disparidade social entre elas, sendo esta disparidade compreendida não só em termos de diferença, como também de hierarquia”.
Sogame (2001, p. 96) identifica em Castells a observação de que existem três níveis de ação e/ou influência que sofre a segregação urbana - a ECONOMIA, a POLITICA e a IDEOLOGIA. Ao nível econômico, além da interferência da lógica da distribuição do produto entre os indivíduos e a distribuição específica desse produto que é a moradia, interfere na segregação urbana, também, a capacidade de deslocamento e acesso em relação a pontos estratégicos da rede urbana. No nível político-institucional, o poder local tenderia a reforçar a segregação urbana na medida em que as políticas públicas serviriam para atender aos interesses da fração dominante de cada unidade administrativa. E no nível ideológico, a relativa autonomia dos símbolos ideológicos produziria interferências nas leis econômicas de distribuição dos indivíduos entre tipos de moradia e de espaço ocupado, assim como, a situação social de determinadas comunidades e sua implantação espacial poderiam reforçar tendências á automatização ideológica, isto é, a constituição, em certos grupos, de subculturas ecologicamente delimitadas.
Sousa (2005, p.66) constata, igualmente, que “os espaços residenciais (...) se diferenciam entre si sob o ângulo socioeconômico”. Sendo “a variável renda (...) a principal definidora dessa diferenciação”. Apesar disto, indiretamente no Brasil, “(...) outros fatores, o aspectos materiais quanto imateriais como prestígios e poder – reflete uma diferenciação entre especialmente o fator étnico (“racial”) [indiretamente se] entrelaça, historicamente, com o fator renda”.
Na compreensão de Sousa (idem p.67), a “(...) diferenciação entre as áreas residenciais de uma cidade – diferenciação (...) em matéria de condições de qualidade de vida, incluindo (...) os grupos sociais”. A diferença econômica, de poder e de status refletida entre diversos grupos sociais, são função de várias coisas: “(...) da classe social do indivíduo, a qual tem a ver com a posição que ele ocupa no mundo da produção". Não apenas das grandes classes sociais proprietários de meios de produção [sobretudo os empresários ou capitalistas] e os trabalhadores assalariados [os proletariados], mas também, outras subdivisões dessas classes - as chamadas frações de classes - (profissionais liberais independentes), são referenciais importantes.
No Brasil, em específico, “a segregação afeta uma enorme parcela, não raro a maioria da população (...) morar em favelas, em loteamentos de periferia ou em cortiços”. É uma situação, contínua, “na qual os pobres são induzidos, por seu baixo poder aquisitivo, a residirem em locais afastados do CBD e das eventuais amenidades naturais e/ou desprezados pelos moradores mais abastados” (SOUZA idem. p. 69)
Nesta perspectiva, é evidente existir, segundo Sousa, a carência de infra-estrutura, que, contrasta com os bairros privilegiados da classe média e das elites. Além disso, é evidente a estigmatização das pessoas em função do local de moradia (periferias, cortiços e, principalmente, favelas), que é muito forte.
Sousa (idem. p.71) vai mostrar que existe distinção entre a segregação induzida e a auto-segregação. Em relação à primeira, as pessoas não “escolhem” viver aqui e não ali, sendo forçadas a isso. Já a segunda, são as pessoas que fazem à opção de se afastar ou apartar o mais possível da cidade. E exemplifica que: “Essa é vista como barulhenta, congestionada e, por isso desagradável. E, como também é sinônimo de pobreza pelas ruas, de assaltos etc., é vista como mais do desagradável: é vista como ameaçadora”.
Porquanto, para Sousa (idem. p.84), a segregação residencial “é um resultado de vários fatores, os quais (...) da pobreza [do racismo, principalmente nos EUA] e do Estado na criação de disparidades espaciais em matéria de infra-estrutura e no favorecimento dos moradores da elite (...)”. Em suma, aponta dois pontos fundamentais para o conceito. O primeiro é que, “a segregação está entrelaçada com disparidades estruturais na distribuição da riqueza socialmente gerada e do poder”. E segundo que, “a segregação deriva de desigualdades e, ao mesmo tempo, retroalimenta desigualdades, (...), ao condicionar a perpetuação de preconceitos e a existência de intolerância e conflitos”.
Já Corrêa (op.cit. P.08) inicia considerando que as áreas residenciais segregadas são áreas distintas em termos de forma e conteúdo social. A forma é o cartão de visita perceptível delas no espaço urbano, enquanto que o conteúdo seria o “produto da existência de classes sociais, sendo a sua espacialização no urbano”. Não apenas das grandes classes, mas também, dos grupos sociais, pois, os bairros são, igualmente, “locais de reprodução dos diversos grupos sociais”. (idem. p.09). Ademais, Corrêa (idem. p.59) mostra as áreas residências segregadas como “processos e formas espaciais vinculados à existência e reprodução dos diferentes grupos sociais”. Em outras palavras, isto que dizer que, as residências são formas espaciais onde ocorrem à existência e reprodução dos diferentes grupos sociais.
Como identificar a segregação residencial na cidade capitalista? Em primeiro lugar, é importante entender que “dá localização diferenciada no espaço urbano das classes sociais fragmentadas emerge a segregação residencial da cidade capitalista”. Daí, em segundo lugar, pode se verificar a segregação residencial das classes sociais fragmentadas “de acordo com o diferencial da capacidade que cada grupo social tem de pagar pela residência que ocupa, a qual apresenta características diferentes no que se refere ao tipo de localização”. (idem. p. 62). Por isso, existe uma diferença espacial na localização de residências vistas em termos de confortos e qualidade.
Corrêa assim como Sousa também diferencia as formas de segregação socioespacial que se apresenta como: auto-segregação de segregação imposta. Enquanto a primeira refere-se “à segregação da classe dominante”, a segunda se liga “a dos grupos sociais cujas oportunidades de como e onde morar são pequenas ou nulas”. E complementa a interface existente entre os dois tipos de segregação ao dizer que:
Assim, existe um duplo papel: o de ser um meio de manutenção dos privilégios por parte da classe dominante e o de um meio de controle social por esta mesma classe sobre os outros grupos sociais, especialmente a classe operária e o exército industrial de reserva. Este controle está diretamente vinculado à necessidade de se manter grupos sociais, desempenhado papéis que lhe são destinados dentro da divisão social do trabalho, papéis impostos pela classe dominante que precisa controlar um grande segmento da sociedade, não apenas no presente, mas também no futuro, pois se torna necessário que se reproduzam relações sociais de produção.
Pode-se em geral resumir as considerações de Corrêa (idem. p. 65-66) sobre segregação, dizendo que para ele: “A segregação residencial implica necessariamente em separação espacial das diferentes classes sociais fragmentadas”. E que, podem ser vistas como um meio de reprodução social, e neste sentido, o espaço social age como um elemento “condicionador” sobre a sociedade: “enquanto o lugar de trabalho, fábrica e escritórios, constituem-se o local da produção, as residências e os bairros, definidos como unidades territoriais e sociais, constituem-se no local de reprodução”.
Quem também aborda o significado da segregação do ponto das áreas sociais é Harvey. Para esse estudioso do conhecimento urbano, (apud CORRÊA, p.65), as “áreas residenciais fornecem meios distintos para a interpretação social”, uma vez que, “os indivíduos derivam seus valores, expectativas, hábitos de consumo, capacidade de se fazer valer e estado de consciência”. No tocante a “diferenciação residencial”, essa, “deve ser interpretada em termos de reprodução das relações sociais dentro da sociedade capitalista”. Esclarece ainda que diferenciação residencial “significa acesso diferenciado a recursos necessários para adquirir oportunidades de ascensão social”, como por exemplo, a educação. Portanto, na apreciação de Harvey (apud CORRÊA, p.65), “segregação significa diferencial de renda real – proximidade às facilidades de vida urbana, como água, esgoto, áreas verdes, melhores serviços educacionais, etc.”
Na base destas considerações teóricas, que buscam dar conta dos comportamentos dos fatos observados por elas mesmas, pode-se então passar ou buscar identificar e reconhecer sua previsão em diversos espaços urbanos. Nesta perspectiva, é possível constatar que o produto das ações sociais (econômicas, de poder ou político-institucionais, de status da classe dominante e/ou dos grupos sociais excluídos) encontrado na sua organização espacial vem de um processo de produção social-histórico desigual, e requereu, necessariamente, movimentos sucessivos de ocupação, criação, recriação e rebatimento no espaço urbano pelas diversas classes sociais e das frações de classes, sendo sua espacialização no urbano.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério das cidades. Plano Diretor Participativo: Guia para a elaboração pelos Municípios e cidadãos. 2º Edição/ coordenadoria Geral de Raquel Ronik e Otilie Macedo Pinheiro. Brasília. Ministério das cidades, 2000.
CARLOS, Ana Fani Alessandri. A (Re) produção do Espaço Urbano. São Paulo: Editora da Universidade, 1994.
CORRÊA, Roberto Lobato. O espaço urbano. São Paulo: Ed. Ática, 1989.
CASTELLS, Manuel. A questão urbana. Rio de janeiro. Ed. Paz e Terra, 1983.
SANTOS, Milton. Espaço e método. São Paulo: Nobel, 1985. (coleção espaços).
SOUZA, Marcelo Lopes de. ABC do desenvolvimento urbano. 2ºed. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
SOGAME, Maurício. Rudimentos para o exame da urbanização em sua fase crítica: uma aproximação ao conceito de segregação. Vitória, Revista Geografares, nº. 2, junho de 2001.
NOTAS
[1] Talvez esta formulação de relações percebidas e concebidas no espaço urbano seja a reformulação que Corrêa faz quando tratando que cada uma das partes mantém relações espaciais com as demais, diz: “Estas relações manifestam-se empiricamente através de fluxos de veículos e de pessoas associados às operações de carga e descarga de mercadorias, aos deslocamentos quotidianos entre as áreas residenciais e os deslocamentos locais de trabalho, aos deslocamentos menos freqüentes para compras no centro da cidade ou nas lojas do bairro, às visitas aos parentes e amigos, e às idas ao cinema, culto religioso, praia e parques”. E também ao dizer que: “manifesta-se de modo menos visível [no capitalismo] através das relações espaciais envolvendo a circulação de decisões e investimentos de capitais, mais-valia, salários, juros, rendas, envolvendo ainda a prática do poder e da ideologia. Estas relações espaciais são de natureza social, tendo como matriz a própria sociedade de classes e seus processos. As relações espaciais integram, ainda que diferentemente, as diversas partes da cidade, unindo-as em um conjunto articulado cujo núcleo de articulação tem sido, tradicionalmente, o centro da cidade”. (Corrêa. op.cit.p. 07-08).
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