segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012
Conceito de Povo
Por Nelson Werneck Sodré
Poucas palavras têm um emprego tão freqüente quanto
apalavra povo. Na linguagem política, nenhuma a excede em uso. “Vontade do
povo”, “interesse do povo”, “defesa do povo”, são expressões correntes,
repetidas por quantos falam e escrevem. Como o ato político por excelência, nas
democracias do tipo do Brasil, é o ato eleitoral, — quando são escolhidos os “representantes
do povo”, — a realização desse ato, dos preliminares à apuração de resultados,
corresponde a um período em que o consumo da referida palavra é mais intenso: todos
os interessados dizem dirigir-se ao povo, apelam para o povo, proclamam os
direitos do povo.
Esse uso imoderado, embora natural nas condições em
que vivemos, por parte de pessoas as mais variadas, e dirigindo-se, também, aos
grupos mais variados, deu à palavra povo uma significação tão genérica que a
despojou de qualquer compromisso com a realidade. Na boca ou na pena dos homens
públicos, hoje, — e claro está que isso não acontece somente no Brasil, — povo
é uma abstração. Cada um é livre de atribuir à palavra povo o significado que
bem imaginar. E, particularmente, incluir-se em pessoa naquilo que imagina ser
o povo. Mesmo na linguagem política, — e é no plano político que o seu uso tem
importância, — aquela palavra mágica, refrão a que todos se apegam, fórmula
para todos os problemas, sésamo para todas as portas, não tem limitações,
contorno, características.
Expressa, de modo vago aliás, todos os que
participam da vida política, e mesmo a maioria dos que dela não participam.
Ninguém aceitaria a sua própria exclusão do campo a que se aplica o letreiro
povo. Todos se consideram povo. Uma secreta intuição, entretanto, faz com que
cada um se julge mais povo quanto mais humilde a sua condição social: é este um
título, aliás, — e o único, — de que os desfavorecidos da sorte não abrem mão.
Eles nada possuem, mas por isso mesmo orgulham-se de ser povo. Esse orgulho
corresponde, espontaneamente, ao sentido da definição que liga o conceito de povo
à situação econômica dos grupos, camadas ou classes sociais.
Algumas correntes, realmente, interpretando os
fatos políticos, identificam o povo com os trabalhadores, e admitem que os
trabalhadores constituem as massas populares, ou a sua maioria, sendo
desprezíveis, no conjunto daquelas massas, os não trabalhadores. Outros, mais
rigorosos, aceitam como trabalhadores e, conseqüentemente, como povo, apenas os
produtores de bens materiais. É verdade, sem dúvida, que, em todos os tempos,
em todas as fases históricas, os trabalhadores ou, mais restritamente, os
produtores de bens materiais, constituíram, e constituem, a massa principal do
povo, e desempenharam, e desempenham hoje, com mais forte razão, o papel
fundamental no desenvolvimento da sociedade. Mas é também fato indiscutível
que, em todas as fases históricas, e ainda hoje, na fase histórica que estamos
vivendo, as massas populares abrangeram, e abrangem, camadas muito variadas da
população, nelas compreendidas as que não
produziam, e não produzem, bens materiais, e até mesmo aquelas que se distinguiam
pela circunstância de aproveitar o trabalho alheio para se diferenciar das
outras.
A idéia de que o povo é constituído apenas pelos produtores
de bens materiais é uma inequívoca limitação, na grande parte dos casos, — no
caso do Brasil, por exemplo. Há trabalhadores, na sociedade brasileira, e na
sociedade de todos os países, que não podem ser englobados entre os produtores
de bens materiais e, entretanto, pertencem ao povo. Os empregados não produzem
bens materiais, nem os funcionários, nem os intelectuais. Seria justo
excluí-los do conceito de povo? Parece que não. Por aí vemos que o critério
econômico restrito não pode servir de base a uma conceituação aceitável e
justa. Outros critérios, mais amplos, que englobam entre os trabalhadores também
aqueles que realizam um trabalho útil à sociedade, e não apenas um trabalho que
resulte na produção de bens materiais, seriam mais justos, sem qualquer dúvida.
Mas não levariam ainda a um conceito exato de povo.
Antes do exame de um critério que possa levar a um conceito
exato de povo, é importante assinalar que o conceito de povo não pode ser
definido senão considerando as condições reais de tempo e de lugar. Povo, hoje,
no Brasil, não é o que era há um século; não é a mesma coisa que nos Estados
Unidos; nem o que é na China. A composição dos grupos, camadas e classes que
constituem o povo muda ao longo do tempo, e varia de país em país, de nação em
nação. Dentro de um mesmo país, a referida composição muda conforme a sociedade
evolui: é pacífico que o operário brasileiro faz parte do povo, hoje. Mas há
cem anos não havia operários, no Brasil. Isto significa que não havia povo?
Parece que não.
Povo, há cem anos, era uma coisa, entre nós; hoje,
é outra. Há cem anos, faziam parte do povo grupos, camadas e classes que, hoje,
não fazem parte do povo. Uns continuam a existir, a ter um papel, mas deixaram
de fazer parte do povo; outros se extinguiram, e por isso deixaram de fazer
parte dele; terceiros surgiram mais tarde, e passaram a fazer parte do povo ou
não passaram, conforme o papel social que desempenham. O conceito de povo
evolui, portanto, muda conforme a sociedade muda. Mas é certo que tais mudanças
não são arbitrárias e acidentais; e por isso há sempre critérios justos para se
definir o conceito exato de povo em cada fase distinta.
Há, evidentemente, em todos os tempos, população e povo.
Os dois termos designam a mesma coisa apenas na fase inicial da história
humana, a da comunidade primitiva, quando não existem classes: povo é então
toda a população. A divisão do trabalho assenta em condições naturais e não em
condições sociais; assenta nas condições de sexo e idade: o homem realiza determinado
trabalho; a mulher, outro; o velho, outro. É uma divisão natural: não torna
alguns elementos mais ricos do que os outros, nem mais poderosos. Mas quando a
sociedade se desenvolve, surgem as classes sociais e, com elas, a divisão social
do trabalho: uns trabalham, outros usufruem do trabalho alheio. A partir desse
momento povo já não é o mesmo que população: os termos começam a designar
coisas diferentes. E não há, a partir de então, critério objetivo para definir
o conceito de povo que não esteja ligado ao conceito da sociedade dividida em
classes.
Daí por diante, até os nossos dias, povo será um conjunto
de classes (ou camadas, ou grupos), ficando outras classes, (ou camadas, ou
grupos) excluídas do conceito. Mas como as classes não são fixas e estáticas, e
a situação de umas em relação às outras também muda, povo não significa sempre
a mesma coisa, isto é, não tem sempre a mesma composição social, não agrupa
sempre as mesmas classes. O conceito de povo, pois, — histórico como todos os
conceitos, — não coincide com o de população. O vazio, o abstrato de que se reveste,
no nosso tempo, na linguagem política usual, deriva da tendência a confundir o
verdadeiro, justo e exato sentido do termo. A insistência na confusão visa a
sonegar a realidade, esconder o fato de que a sociedade se divide em classes e
que nem todas as classes estão incluídas no conceito de povo. Em cada fase
histórica este conceito tem determinado conteúdo, refletindo a estrutura social
vigente e na dependência das condições econômicas imperantes.
Nos fins do século XVIII, quando ocorreu a
Revolução Francesa, o povo compreendia a burguesia, que usufruía o trabalho
alheio, e os trabalhadores, da cidade e do campo, além de camadas
intermediárias; a nobreza feudal, contra cuja dominação se levantaram aquelas
classes, não fazia parte do povo. Analisando a revolução de 1848, na Alemanha,
ocorrida meio século depois, um historiador mencionaria, com justeza, que a
contra-revolução temia “o povo, isto é, os trabalhadores e a burguesia
democrática”. Na revolução russa de 1905 participa, como parte do povo, a
burguesia rural, que detém, na época, segundo os dados da propriedade, a metade
das forças produtivas no campo. Na luta contra o tzarismo, para derrocar a autocracia,
participam, segundo um intérprete fiel, como forças capazes de conquistar a
vitória decisiva, “o proletariado e os camponeses, desde que consideremos as
forças essenciais e distribuamos a pequena burguesia agrária e urbana (que faz parte
também do povo) entre uns e outros”.
Em diferentes fases históricas e em diferentes
países, portanto, o conceito de povo corresponde a diferentes agrupamentos de
forças sociais. Há uma composição específica para cada situação concreta; não
uma situação eterna e imutável; povo não é a mesma coisa em diferentes
situações históricas. Mas, evidentemente, encontra-se um traço geral, permanente,
que atravessa a história e se repete em cada lugar, algo que existe em qualquer
tempo e em qualquer lugar, quando se trata de povo e se procura definir o
conceito, para compreender o papel dessa força social na vida política. Esse traço
é o seguinte: em todas as situações, povo é o conjunto das classes, camadas e
grupos sociais empenhados na solução objetiva das tarefas do desenvolvimento
progressista e revolucionário na área em que vive.
As classes compreendem as parcelas da população
que, por sua situação objetiva, têm interesses comuns a defender, na decorrência
do “lugar que ocupam em um sistema de produção social, historicamente
determinado pelas relações em que se encontram com respeito aos meios de
produção (relações que, em grande parte, ficam estabelecidas e formalizadas nas
leis), pelo papel que desempenham na organização social do trabalho e,
conseqüentemente, pelo modo e pela proporção em que percebem a parte da riqueza
social de que dispõem”. As classes são produto da história, e o lugar que
ocupam é também historicamente condicionado. A história humana não passa do desenvolvimento
das classes, das lutas e das mudanças nas relações entre elas. Em cada fase
histórica, pois, em condições
determinadas, certa classe, ou certas classes,
agrupam-se num conjunto que se conhece como povo, e só é válido para tal fase.
Povo, assim, é algo que escapa à confusão e à
abstração da linguagem retórica, cujo fim, consciente ou inconsciente, está em
obscurecer o sentido concreto e o conteúdo social do conceito. Sua
indiscriminação tem sentido demagógico evidente, em contraste com aquele
conteúdo e com todas as formas de que se reveste. Numa sociedade dividida em
classes, a população se reparte em classes dominantes, exploradoras, de um
lado, e classes dominadas, de outro, aquelas que as primeiras oprimem, exploram
e privam de direitos, inclusive e principalmente dos direitos políticos.
Realizam essa exploração, entretanto, afirmando sempre que representam o povo.
Estão interessadas, pois, em que o conceito de povo seja vago, arbitrário e
confuso. Tão confuso que englobe exploradores e explorados.
A essa ambiguidade, que impede distinguir entre população
e povo, junta-se outra, que impede distinguir entre nação e povo, conceitos que
se referem também a coisas diferentes. Freqüentemente, no que se refere a
problemas internos, mas também no que se refere a problemas externos, ou de
política exterior, as classes dominantes, que se dizem povo, afirmam, ao
decidir sobre aqueles problemas segundo os seus interesses de classe, que o
fazem em defesa dos interesses “nacionais”, na preservação dos direitos
“nacionais”, e repetem amiúde a expressão “tradições nacionais”. Confundem,
assim, os seus interesses com os interesses nacionais e supõem encarnar a
vontade nacional, isto é, a vontade do povo. As classes dominantes, entretanto,
inclusive porque minoritárias, não representam o povo, no geral, e nem sempre
representam a nação, embora detenham o poder, dominem o Estado e proclamem a
sua identidade com o que é nacional. Existe o deliberado propósito de confundir
todas as classes e os seus interesses, como se estes fossem comuns e idênticos
em todos os problemas, e a classe que detém a representação política fosse
apenas a intérprete de todas as classes porque com interesses idênticos aos de
todas elas.
É exato que em alguns casos, — e só o exame de situações
concretas permitiria distinguir bem as características de cada um — as classes
dominantes realizam o que é do interesse da maioria das classes, ou das classes
majoritárias, mas isso não é uma regra e está longe de ser a regra. Acontece sempre,
entretanto, quando o interesse da classe dominante é também defendido,
preservado ou mantido. A Independência do Brasil foi um problema político que
uniu as classes sociais brasileiras: realizando-a, a classe dominante de então representou
o desejo e o interesse das demais, mas também o seu particular desejo e
interesse. Logo em seguida, entretanto, ao empolgar o poder, deixou de
representar o interesse de todas as classes, porque organizou o Estado de
acordo com os seus interesses, exclusivamente. Ninguém pode sustentar que o interesse
de um senhor de engenho da época fosse idêntico ao
de seus escravos. Bastaria o fato de ser, um,
proprietário de escravos e os outros, escravos, para tornar claro o antagonismo
de interesses. Ao realizar a Abolição, a classe dominante teve
também o apoio das classes dominadas, no Brasil,
mas realizou-a quando lhe convinha como classe. São casos em que os interesses
de um grupo aparecem como interesses comuns, e a classe dominante representa a
nação, ao decidir por ela, porque representa, eventualmente, a vontade da
maioria, embora seja, em número, minoria, e não tenha a posse do poder por
vontade da maioria.
Mas, na maior parte dos problemas, e nos problemas fundamentais,
o interesse das classes é divergente, quase sempre antagônico, e as decisões
tomadas pela classe dominante e apregoadas como do “interesse nacional” são, na
realidade, única e exclusivamente, do seu interesse de classe, ferindo o
interesse das classes dominadas, inclusive privadas do direito de protestar
contra isso ou, de qualquer maneira, do direito de fazer prevalecer os seus
interesses. Há manifesta ambiguidade, politicamente determinada, no fato de
investir-se a classe dominante do papel nacional, de defensora do “interesse
nacional”. No caso brasileiro, essa ambiguidade se concretiza, por exemplo,
quando a classe dominante exclui do direito de representação política extensas
parcelas do povo, sob pretexto de serem constituídas por analfabetos; quando
impõe tributos que oneram vencimentos e salários, tornando extremamente difícil
a vida dos trabalhadores e da pequena burguesia; quando prefere aliar-se a
forças estrangeiras, para defender os seus privilégios, temendo o povo mais do
que àquelas forças, e por isso mesmo negando a essência do que é nacional.
Em política, como em cultura, só é nacional o que é
popular. A política da classe dominante não é nacional, nem a sua cultura. Povo
e nação não são a mesma coisa, na fase atual da vida brasileira, mas esta é uma
situação histórica apenas, diferente de outras, uma situação que se caracteriza
pelo fato de que as classes que determinam, politicamente, os destinos do país e
lhe traçam os rumos, tomam as decisões em nome da “nação”, mas não pertencem ao
povo, não fazem parte do povo. Interpretando uma fase da vida peruana, em
conferência de 1888, um escritor daquele país disse: “Não formam o verdadeiro
Peru os agrupamentos de criollos e estrangeiros que habitam a faixa de terra
situada entre o Pacífico e os Andes; a nação é formada pelas multidões de
índios disseminadas na banda oriental da cordilheira”. No Brasil, naquele ano
de 1888, o da Abolição, seria considerado a sério quem afirmasse coisa análoga,
que a nação era formada pelos negros libertos, pelos mestiços, pela massa de
camponeses, pelos que de forma alguma participavam do poder, ou mesmo da
representação, e de forma alguma participavam das decisões nacionais?
A norma de arrogarem-se as classes dominantes o direito
de apresentarem-se como povo e como nação está fundamente ancorada na história.
É que, até os nossos tempos, todas as revoluções, isto é, todos os grandes
movimentos que alteraram a situação das classes sociais umas em relação às outras,
consistiram em derrocar o domínio de determinada classe, que cumprira a sua
missão histórica, substituindo-a por outra, que vinha em ascenção. Eram
revoluções que substituíam uma minoria por outra minoria, e esta outra assumia
o poder, dominava o Estado e transformava as instituições, amoldando-as aos
seus interesses; era o grupo que se capacitara para o domínio e que exercia o
domínio, tendo sido chamado ao domínio pelas condições de desenvolvimento
econômico. Por isso, e somente por isso, quando da derrocada de uma classe minoritária
historicamente superada, a classe minoritária historicamente nova conseguia a
cooperação das classes majoritárias, ou, pelo menos, a sua aceitação pacífica.
A forma comum dessas revoluções consistia em serem, todas, revoluções de
minorias. A maioria se colocava, consciente ou inconscientemente, a serviço da
minoria ascencional, e o conjunto novo que forçava a mudança (classe
minoritária ascendente mais as classes majoritárias dependentes) constituía, para
efeito daquela transformação histórica, o povo. E isso permitia à classe
minoritária ascendente a norma de falar, no poder, em nome do povo, como se,
realmente, o representasse.
Cada nova classe que passava a ocupar o poder em
lugar de outra, também minoritária, via-se obrigada, pela necessidade política,
para alcançar os fins a que se propunha, para defender os seus interesses, a
apresentar esses interesses não como seus apenas, mas como os interesses comuns
de toda a sociedade, os interesses do povo. E expressava esses interesses em
termos
ideais, apresentava as suas formulações e teorias
revestidas do caráter de generalidade, as suas normas como as únicas racionais
e dotadas de vigência absoluta e até do condão da eternidade. E moldava a vida
social de forma conveniente, definindo como sagrados os seus interesses,
fixados como se fossem da totalidade, protegendo-os com a lei e com a força, e tentando
protegê-los ainda pelo costume; e definindo como crime tudo o que atentasse
contra os seus interesses, punindo e perseguindo os que o cometiam, ou apenas
punham em dúvida
o seu caráter sagrado e eterno.
Mas, na realidade, nada é eterno, e o sagrado de
hoje pode ser o sacrílego de amanhã. Passou o tempo dos golpes de surpresa, das
revoluções executadas pelas minorias conscientes à frente das massas
inconscientes. Chegou o tempo em que as revoluções sociais só podem ocorrer com
a participação das massas, isto é, das classes majoritárias, até aqui
caudatárias das classes em minoria; chegou o tempo em que não há revolução social
sem participação do povo, não como alavanca de minorias, mas compreendendo os
motivos de sua participação e
exigindo função dirigente que lhe compense os
sacrifícios. Estamos, pois, vivendo a última fase histórica em que uma classe
dominante minoritária pode arrogar-se o direito de se incluir entre o povo, de
afirmar que defende os interesses do povo quando na verdade defende apenas os
seus interesses, de apresentar-se como intérprete de todas as classes, de
definir-se
como nação. A eternidade dos sistemas políticos já
não é aceita por ninguém. Quando a humanidade alcança o desenvolvimento a que
chegamos em nosso tempo, admitir como final
determinado sistema político seria negar o
progresso humano; seria o mesmo que admitir que os nossos conhecimentos chegaram
à plenitude, constituem o fim dos conhecimentos. Seria negar a própria ciência.
Claro que há sempre um pensamento conservador, alimentado
pela classe dominante minoritária, em afanosa busca de eternidade para a sua
dominação e obrigada a explicá-la e a
justificá-la. Isto acontece porque, freqüentemente,
as idéias se atrasam em relação à realidade: o conhecimento humano é condicionado
pela ordem social e, portanto, entravado quando existem forças que buscam
eternizar-se no poder. Conservadores são aqueles que não verificam quanto o
processo histórico avançou objetivamente e quanto os seus conhecimentos
estacionaram em situações precedentes. A separação entre a teoria e a prática
social leva, finalmente, à perda de crédito, apesar do amplo e complexo
aparelho de difusão de idéias e de conceitos. Quando a realidade nega objetivamente
a validade de conceitos, conhecimentos, idéias e doutrinas, sua vigência está
irremediavelmente condenada e não há propaganda capaz de salvá-la. Ora, a
realidade política do mundo atual nega a eternidade do sistema em que as
classes minoritárias se apresentam como povo, e aponta o seu fim generalizado e
próximo. A realidade política do mundo atual afirma a presença do povo na
história, como força motriz do
desenvolvimento humano. E isso acontece porque o
povo tomou conhecimento e consciência da necessidade de afirmar os seus direitos
e defender os seus interesses, atingindo, portanto, à liberdade. Chegou à
consciência da necessidade, que define a liberdade, após prolongado processo
histórico, mas em condições diversas conforme cada país.
Todo país tem sua estrutura social peculiar, em
dada fase histórica: as classes dominantes não são as mesmas em todos os
países; as classes que constituem o povo também não são as mesmas. Para se
definir o conteúdo do conceito de povo é preciso encará-lo segundo uma situação
histórica determinada e segundo as condições concretas de cada caso, tomando
como base a divisão da sociedade em classes. E é preciso não esquecer que o
desenvolvimento social e o que se conhece, no curso desse desenvolvimento, como
revolução, faz com que a composição das classes, e conseqüentemente a
composição do povo mudem constantemente. Compondo-se de classes, camadas e
grupos diferentes, o povo apresenta contradições internas. Admiti-lo como
formando uma unidade é pura ilusão. Distinguir essas diferentes classes,
camadas e grupos, e compreender as suas contradições não significa, entretanto,
isolar umas das outras, mas situá-las devidamente. O critério justo sobre o
conceito povo ajuda a compreender o papel das massas na história,
particularmente na fase atual, e situa devidamente o complexo processo de
desenvolvimento por que passam países como o Brasil, em que profundas mudanças
estão ocorrendo e em que o mais importante aspecto do que é novo está,
precisamente, na presença do povo na vida política.
In: Sodré, Nelson Werneck. Quem é o Povo no Brasil? Editora Civilização
Brasileira, Rio, 1962.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário