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domingo, 8 de maio de 2011

CRÔNICAS JORNALÍSTICAS E SOCIEDADE NA BELLE ÉPOQUE CARIOCA




CRÔNICAS JORNALÍSTICAS E SOCIEDADE NA BELLE ÉPOQUE CARIOCA: REPRESENTAÇÕES DO TRABALHO E PODER EM LIMA BARRETO E JOÃO DO RIO

Joachin de Melo Azevedo Sobrinho Neto

(Doutorando em História Cultural pela UFSC)

Capturar o verdadeiro tom e truque, o ritmo estranho e irregular da vida, essa é a tentativa cujo vigor mantém a ficção em pé.

Henry James

Em um escrito mais recente, intitulado A história ou a leitura do tempo (2009), o historiador Roger Chartier tanto reflete sobre as contribuições que as noções conceituais de representações, práticas e apropriações forneceram para a consolidação da História Cultural como campo de saber específico da historiografia, como faz um verdadeiro levantamento dos principais impasses que surgiram no seio da disciplina após as incursões realizadas pelos adeptos da linguistic turn a teoria da história, que nivelaram historiografia e ficção romanesca.

Dentre as reações ao ceticismo em torno das possibilidades de construção de conhecimento em torno do passado, Chartier destaca as posturas do filósofo da linguagem Paul Ricouer e do historiador Carlo Ginzburg. No caso de Ricouer, em suas reflexões em torno das relações entre história e memória, fica evidenciado que a memória, ou a sua prática, é que irá conferir sentido aos rastros materiais que os indivíduos deixam para afirmarem sua existência no tempo. Nesse sentido, a memória torna-se matriz da história, pois confere ao “discurso histórico (...) a certificação imediata e evidente da referencialidade de seu objeto” (CHARTIER, 2009 : 23-4).

Em relação à Ginzburg, o autor se refere ao historiador italiano como o protagonista da articulação de uma verdadeira máquina de guerra teórica contra o que se pode entender como ceticismo pós-moderno, no âmbito da historiografia. No cerne das discussões travadas ao longo das obras de Ginzburg, prevalece a noção, com base em uma tradição grega de matriz aristotélica, de que a noção de prova não é incompatível com a retórica, o que pressupõe, de modo taxativo, que o conhecimento, mesmo o conhecimento histórico, é possível e que, ao contrário do que consideram os pós-modernos, o estilo e a história, ao invés de serem incompatíveis, estão estreitamente entrelaçados. 1

Sobre as relações entre passado, história e ficção, Chartier inicia a discussão citando as peças históricas, ou histories, escritas para o teatro por Shakespeare. Nesse caso, é interessante perceber como a ficção, enquanto uma modalidade discursiva, é construída a partir de uma dada realidade histórica que lhe serve como referencial, mas que não apresenta a pretensão de apresentar essa realidade tal como ela foi. Assim, as fontes literárias, ao representarem:

(...) fatos e personagens históricos e colocando no cenário ou na página situações que foram reais ou que são apresentadas como tais, (...) adquirem a capacidade de produzir, moldar e organizar a experiência coletiva mental e física – e entre essas experiências se computa o encontro com o passado. (CHARTIER, op. cit. : 25)

As contribuições de Chartier têm inspirado vários estudos acerca da relação entre história e literatura que não pactuam com a perspectiva cética, dita pós-moderna. A meu ver, é perfeitamente plausível essa tessitura entre a noção de memória e ficção, pois pode ampliar as possibilidades de abordagens historiográficas das narrativas artísticas. Buscar na escrita literária os indícios representativos de uma determinada época ou sociedade é, antes de tudo, estabelecer diálogos pertinentes entre o conhecimento histórico e a arte, respeitando as fronteiras que cada um desses diferentes campos possuem.

No caso de se utilizar as crônicas jornalísticas enquanto fonte, o historiador deve estar atento de que está lidando com um gênero literário alvo de constantes polêmicas conceituais. A crônica jornalística pode ser compreendida como uma narrativa artística que tem de se adaptar a lógica de uma indústria cultural que padronizou e, em certa medida, massificou a veiculação da informação. Vale ressaltar que essa adaptação não se dá de forma meramente passiva, por isso, a crônica jornalística é um espaço privilegiado para a manifestação de tensões constantes entre a imaginação criadora e inovadora e os desígnios de uma lógica social tecnocrática.

Regina Rossetti e Herom Vargas, no artigo A recriação da realidade na crônica jornalística brasileira (2006), detalham bem essas tensões entre criação e padronização que marcam a necessidade de consumo massivo de bens culturais na sociedade moderna. Para os autores, a crônica jornalística ou de jornalismo literário acaba sendo uma forma de linguagem mais propícia para o afloramento da “inventividade e criatividade, diferenciando-se, por isto mesmo, de outros gêneros jornalísticos mais descritivos e informativos, como a notícia” (ROSSETTI & VARGAS, 2006 : 06).

No caso dos estudos vinculados a área do jornalismo, a crônica enquanto fonte é utilizada para a pesquisa em torno das diretrizes da criação e de seus processos no campo da comunicação social. No caso de um estudo historiográfico preocupado em estabelecer nexos entre sociedade e cultura, como pretende este trabalho, os usos de um gênero textual híbrido, que borra as fronteiras entre o literário e o jornalístico, estão pautados, sobretudo, no potencial histórico que as visões críticas construídas sobre um dado contexto possuem, pois a crônica:

Tal como é produzida no Brasil, caracteriza-se por ser uma composição breve, publicada em jornal e revista, que embora relacionada com a atualidade, possui elementos poéticos e ficcionais. Ela pode, assim, refletir de maneira poética, e às vezes irônica, o imaginário coletivo presente no cotidiano de nossas vidas. Entretanto, como não quer ser uma mera reprodução dos fatos, usa recursos próprios da literatura para expressar-se: diálogos, alegorias, versos, personagens típicos, metáforas, analogias. Além do estilo, a criação é visível também nos recursos lingüísticos usados na crônica, na estrutura e temporalidade próprias. A crônica é um olhar diferente e fragmentário do real que não ambiciona a totalidade dos fatos, como uma fotografia do real que capta poeticamente o instante, dando a ele uma dimensão de eternidade. (ROSSETTI & VARGAS, op. cit. : 07)

Nesse sentido, a crônica brasileira é bastante peculiar em relação as suas acepções no Velho Mundo, onde, sobretudo, na Idade Média, a crônica era usada para estabelecer relações entre acontecimentos organizados linearmente, em seqüência cronológica. Interessa aqui não o uso dessa modalidade cronológica linear de escrita como fonte, mas a crônica enquanto “filha de Chrónos, (...) ligada ao seu próprio tempo” (Idem : 08).

Aproveitando uma expressão machadiana para intitular sua obra, Wellington Pereira, em Crônica: arte do útil ou do fútil?, constrói uma verdadeira arqueologia do termo, desde suas origens nas sociedades antigas até a contemporaneidade, para compreender o modo como, a partir do século XIX , “o cronista procura entender a nova ordem de enunciação imposta pela sociedade industrializada” (PEREIRA, 1994, p. 20). Para o autor, é justamente nesse século, marcado por uma efervescência política sempre propicia ao acirramento dos ânimos e pela consolidação da imprensa burguesa.

Útil como referência para pesquisas não só literárias, mais jornalísticas, historiográficas, sociológicas, etc. as crônicas apresentam-se como um gênero de escrita intimamente ligada aos anseios e a representação do cotidiano. A crônica, em suas mais variadas modalidades e fases, sempre esteve comprometida com relatos históricos, problemas políticos, as relações de classes sociais e em formar, dentro de tradições, tanto críticas, como doutrinárias, a opinião do leitor. Constatando essas implicações políticas e temporais dessa modalidade de escrita, que atinge todo seu esplendor juntamente com a consolidação da imprensa burguesa, Margarida de Souza Neves (1995 : 25) indaga os pesquisadores: “em que outro documento será possível encontrar o cotidiano monumentalizado como na crônica?”.

Para podemos caracterizar o que Nicolau Sevcenko (2003)2 denominou de inserção compulsória do Brasil na Belle Èpoque é necessário atentar que a transição do Império para a República foi bastante tensa, marcada por uma série de revoltas que foram abafadas em uma série de episódios dramáticos que envolveram o uso da força militar. A república da espada, personificada por Floriano Peixoto, esmagava os ideais iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade e em seu lugar favorecia o desenvolvimento de um capitalismo predatório, transformando o Rio de Janeiro na capital do arrivismo, na qual os grandes heróis do dia eram os especuladores da bolsa de valores.

Enquanto último grande remanescente do sistema escravocrata, O Brasil foi direcionado, pelas elites que assumiram o prumo da jovem república, para assimilar as novas tendências políticas, econômicas e culturais que estavam vigorando na Europa e Estados Unidos. Como preencher a paisagem de um país até então essencialmente agrário com engenhos a vapor, fábricas automatizadas, ferrovias, amplas zonas industriais, cidades em expansão, novos e diversificados meios de comunicação, Estados nacionais cada vez mais fortes, conglomerados multinacionais de capital e inseri-lo na lógica de um mercado mundial cada vez mais insaciável e devastador? Na administração do presidente civil Rodrigues Alves e do governador do Rio, Pereira Passos, uma série de medidas conhecidas como reformas urbanas, para acabar com “a imagem da cidade insalubre e insegura” (SEVCENKO, 2003 : 41), irão ilustrar bem o projeto de modernidade imposto de cima para baixo para a população brasileira.

Todas essas referências, feitas de forma muito concisa, pela própria limitação que a formatação de um artigo impõe, foram citadas no intuito de oferecer pelo menos um básico panorama sócio-cultural da Belle Époque carioca. Existia sim, na Rua do Ouvidor, nos jardins do Gàrnier, uma gente vistosa e elegante, homens vestidos com ternos caros saboreando um café, depois de flanarem e se dedicarem à arte do flirt, cocotes chics em vestidos suntuosos de seda, com caros chapéus de seda paquerando as vitrines de joalherias, a espera de um casamento perfeito com algum bacharel em Direito. Mas nas margens dessa paisagem também existia uma cidade disforme, de vielas lamacentas e aspecto humilde que disputava a visibilidade com o pomposo centro do Rio. Os habitantes dos subúrbios, como coloca Sandra J. Pesavento (2001 : 32), “com a acentuação dos desníveis sociais ocorridos nas últimas décadas do século 19, passam a ser identificados como feios, sujos e malvados” e são estigmatizados pela ordem dominante.

João Paulo Barreto (1881-1921), ou como ficou conhecido, através de seu pseudônimo, João do Rio, era um cidadão carioca distinto, afeito ao uso de paletós engomados, uso de bengalas com castão e, ao contrário de Lima Barreto, conseguiu sobreviver até as circunstâncias obscuras de sua morte, através das letras. As narrativas do jornalista, se hora revelam-se um tanto sensacionalistas, são construídas também com uma grande sensibilidade. Os diálogos que estabelece com a cidade revelam muito sobre o imaginário urbano carioca da Bélle Époque. Como coloca Sandra Pesavento: “João do Rio inaugurava um tipo de jornalismo fin-de-siécle, com tons de inspiração decadentista, e que se caracterizava por uma descida aos infernos” (PESAVENTO, 2001 : 42-3). Assim o autor em questão visitava casas de ópio, prisões, subúrbios e casas noturnas elaborando uma narrativa que diluía as fronteiras entre a linguagem literária e a jornalística, fazendo muito sucesso entre o público.

A postura de João do Rio frente às reformas urbanas é um tanto dúbia. Por um lado, se ironiza as pretensões de se transformar da noite para o dia uma cidade tropical em uma cidade de ares gélidos: “de súbito, da noite para o dia, compreendeu-se que era preciso ser tal qual Buenos Aires, que é o esforço despedaçante de ser Paris” (RIO, 1909 : 215). Por outro, não deixa de disfarçar o choque que sente quando tem de se defrontar com o universo dos excluídos da Bélle Èpoque, nos “livres acampamentos da miséria” (RIO, 1911 : 141).

Na crônica Os trabalhadores de estiva (1908), atendo-se aos aspectos da miséria carioca, João do Rio faz essa “descida ao inferno” para adentrar no universo do trabalho penoso que era exercido no cais da alfândega, por imigrantes portugueses e pobres em geral. Madrugando no cais, solicita acesso ao bote que transporta os estivadores a bordo das embarcações e obtendo permissão para acompanhar a rotina dos estivadores aperta uma mão “degenerada pelo trabalho com as falanges recurvas e a palma calosa e partida” (RIO, 2007 : 144).

O estudo de Sidney Chalhoub (2001) sobre o cotidiano dos trabalhadores na Belle Èpoque carioca narra alguns pontos sobre o aspecto tenso e violento que preenchia a atmosfera sob a qual essas pessoas desenvolviam meios de resistência a exploração capitalista e cultivavam seus próprios valores. Esses protagonistas anônimos da história que além de terem de lidar com as agruras de um labor extenuante, tinham de enfrentarem disputas e tensões internas e ainda uma série de estratégias dominantes que procuravam disciplinar, por meio da vigilância, desde os espaços destinados ao trabalho até espaços consagrados ao lazer popular.

Portanto, o aspecto e as seqüelas físicas que os trabalhadores portavam realmente não deveriam ser das mais agradáveis para nosso atento cronista. Em um trecho mais adiante da crônica, João do Rio atenta para o nível de complexidade que envolvia o trabalho de estiva, especificando que para cada leva de produtos, da “aguardente, do bacalhau, dos cereais, do algodão” (CHALHOUB, op. cit. : 145), existiam trabalhadores específicos responsáveis para o trato com cada tipo de mercadoria. Para o cronista:

Aqueles seres ligavam-se aos guinchos; eram parte da máquina; agiam inconscientemente. Quinze minutos depois de iniciado o trabalho, suavam arrancando as camisas. Só os negros trabalhavam de tamancos. E não falavam, não tinham palavras inúteis. Quando a ruma estava feita, erguiam a cabeça e esperavam a nova carga. Que fazer? Aquilo tinha de ser até as cinco da tarde! 20

Como se pode perceber, nem tudo no limiar da modernidade brasileira era composto apenas por glamour. Com o aperfeiçoamento dos mecanismos de controle social tão necessários a hegemonia da elite que assumia as rédeas do país, os trabalhadores também passam a resistir em direção “a não-conformidade, a luta” 21, organizando greves, delimitando territorialidades onde possam transitar sem o perigo da repressão policial, inventando códigos de sociabilidades e solidariedade que forjam uma identidade própria.

João do Rio finaliza, portanto sua crônica com o resgate da fala de um estivador que apresentando toda uma consciência em torno daquela situação de exclusão e penúria, causada pela ordem burguesa recém-implantada no país, fala ao homem de letras em um tom franco, que sendo impossível atestarmos se tal diálogo realmente aconteceu e caso tenha ocorrido, se foi registrado fidedignamente, seria melhor percebermos que essa fala possui implicações históricas profundas:

Que querem eles? Apenas ser considerados homens dignificados pelo esforço e a diminuição das horas de trabalho, para descansar e para viver. Um deles, magro, de barba inculta, partindo um pão empapado de suor que lhe gotejava da fonte, falou-me, num grito de franqueza:

- O problema social não tem razão de ser aqui? Os senhores não sabem que esse pais é rico, mas que se morre de fome? O capital está nas mãos de grupo restrito e há gente demais absolutamente sem trabalho. Não acredite que nos baste o discurso de alguns senhores que querem ser deputados. Vemos claro e, desde que se começa a ver claro, o problema surge complexo e terrível. A greve, o senhor acha que não fizemos bem na greve? Eram noves horas de trabalho. De toda parte do mundo os embarcadiços diziam que trabalho da estiva era só sete! Fizemos mal? Pois ainda não temos o que desejamos.

A máquina, no convés, recomeçara a trabalhar. 23

Encerra-se por aqui então nossa incursão com esse outro polêmico guia da modernidade na cidade do Rio de Janeiro. Apesar de falar de um lugar social oposto do qual Lima Barreto se posicionou, João do Rio também apresenta textos que retratam uma face contundente da Belle Époque carioca. As narrativas desse escritor-jornalista, quando submetidas a uma filtragem necessária por parte do historiador, podem ser uma importante fonte que, mais que meros documentos de um tempo, são textos entranhados de história.

No meio dessa paisagem suburbana, precisamente no subúrbio de Todos os Santos, surge uma figura de cabelos desgrenhados, paletó sujo e amassado, passo cambaleante, mulato e de tímidos trejeitos. Lima Barreto teve a vida pessoal marcada por uma série de tragédias que foram desde o falecimento da mãe, quando tinha seis anos de idade, o enlouquecimento de seu pai, João Henriques, que não suporta os impactos da transição da ordem monárquica para a republicana até o abandono dos estudos na Escola Politécnica devido a demonstrações de racismo pelos colegas e professores. 3

Pobre, mulato e suburbano, Lima Barreto, por seus posicionamentos polêmicos, não consegue viver das letras e passa a ocupar, por meio de concurso, o cargo de amanuense na Secretaria de Guerra para através de um pequeno salário sustentar o pai enfermo e os irmãos. Como válvula de escape, entrega-se à bebida, passando rapidamente da cerveja ao consumo da cachaça. Como coloca a socióloga Maria Cristina Machado, sofre na própria pele as exclusões praticadas por uma “(...) sociedade elitista, preconceituosa e discriminatória” (MACHADO, 2002 : 17) e reverte para a escrita a sua indignação e ressentimento, em passagens muitas vezes comoventes e constrangedoras, devido à atualidade de suas denúncias, buscando tanto se fazer ouvir enquanto sujeito histórico, quanto trazer à tona o grito daqueles que estavam a margem ou desfavorecidos pela modernidade brasileira.

Na crônica A estação, publicada primeiramente em 1921, Lima Barreto ressalta a importância das estações das estradas de ferro para os subúrbios cariocas chegando a taxá-las, inclusive, de eixos da vida nos subúrbios. O autor fala sobre as quatro principais estações que se situavam nas periferias urbanas do Rio, dando destaque para a estação do Méier e a intensa atividade comercial que se desenvolvia em torno dessa estação, sendo, na opinião do autor, as padarias, botequins, confeitarias, cinemas, circos, casas de jogos verdadeiros motivos de orgulho para os subúrbios e os suburbanos. Porém, quando o escritor se atém a escutar a conversa entre dois funcionários públicos sentados nos bancos da estação, dois burocratas, como salienta, as críticas do autor recaem sobre a postura arrogante e presunçosa quando um desses senhores em um dialogo sobre gramática portuguesa dá a entender que seus conhecimentos lingüísticos são mais um fator de distinção social que venham a inferiorizar mais ainda os anônimos diante de sua figura. Como recurso estilístico, Lima Barreto reduz o esnobe membro da classe média brasileira a um arremedo dos cavaleiros europeus:

Falava sem interrupção, como um papagaio, cheio de suficiência e presunção. Conhecia-o de vista. Certas manhãs, quando ia ler os jornais no botequim mais próximo de casa, via-o a cavalo, reluzentes meias-botas de verniz, esporas de prata, chicote de castão e correntinha também de prata, via-o em cima de um cavalo xucro,felpudo, feio, esticando o pescoço muito para frente, num esforço doido para carregar o seu pimpão de cavaleiro, que, na sela, ia de baixo para cima e vice-versa. Mas sem perder nunca, na fisionomia, o ar de fidalgo rico que passeia a cavalo, no Bois de Boulogne, a sua prosápia e a sua morgue. (BARRETO, 2005 : 28)

Lima Barreto ao acatar a missão de escriba do cotidiano, enquanto cronista, quer evidenciar para os leitores de que forma uma conversa banal entre duas pessoas em um banco de uma estação ferroviária pode servir para a afirmação de diversos preconceitos sociais. Implicitamente, o autor revela a tensão gerada quando diversos segmentos sociais são obrigados a freqüentar o mesmo espaço físico para a realização de suas rotinas, enfocando a arrogância e a hipocrisia do funcionário público que depende dos transportes suburbanos para se locomover, mas que não assume de forma alguma a condição de suburbano, inferiorizando os que assim julga agindo com ares de fidalgo.

O Rio de Janeiro urbaniza-se e, é pelo luxo, pela pompa, pelos automóveis nas ruas, pela construção de arranha-céus e de lugares destinados ao lazer e ao entretenimento, mas também essas grandes transformações urbanas foram acompanhadas da exclusão social manifestada nas ações praticadas contra as camadas populares durante as reformas urbanas. Novos símbolos de ostentação, status e opulência são instituídos, ao passo que também são forjadas identidades que sucumbem à pobreza e a mediania.

Encontramos neste caminho entre Literatura e História, Lima Barreto, um escritor possuidor de uma obra de resistência que buscava sensibilizar o leitor a fim de conduzi-lo a tomar consciência de que são nos atos cotidianos que acontecem as grandes transformações sociais e João do Rio, um homem testemunha das tensões violentas que se instalam na estreiteza do contexto local – o cotidiano do Rio de Janeiro – e que trouxe como elemento reflexivo de seus escritos a situação e as condições de vida de toda sorte de anônimos da Belle Époque. Vemos aqui como uma única cidade pode adquirir duas dimensões diferentes quando representadas por dois diferentes cronistas.

REFERÊNCIAS:

BARRETO, Lima. Melhores crônicas. São Paulo: Global, 2005.

CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Tradução de Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. São Paulo: Editora Unicamp, 2001.

MACHADO, Maria Cristina Teixeira. Lima Barreto: um pensador social na Primeira Republica. Goiânia: editora da UFG; São Paulo: EDUSP, 2002.

NEVES, Margarida de Souza. História da crônica, crônica da história. In: RESENDE, Beatriz. (Org.). Cronistas do Rio. Rio de Janeiro: José Olympio: CCBB, 1995.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma outra cidade: o mundo dos excluídos no final do século XIX. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001.

PEREIRA, Wellington. Crônica: arte do útil ou do fútil?. João Pessoa: Idéia, 1994.

RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Martin Claret, 2007.

_____. O velho mercado. In: Cinematografo. Porto: Chardon, 1909.

_____. Os livres acampamentos da miséria. In: Vida vertiginosa. Rio de Janeiro, Paris/H. Garnier: Livreiro-editor, 1911.

ROSSETTI, Regina & VARGAS, Herom. A recriação da realidade na crônica jornalística brasileira. In: UNIrevista, vol. 1, nº 3, jul/2004. (pp. 1-10)

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.



1 Para um entendimento mais detalhado sobre a tese das implicações cognitivas das escolhas narrativas recomendo do mesmo autor a obra Relações de força: história, retórica, prova, publicado pela Companhia das Letras em 2002. Partindo do campo onde os céticos pós-modernos mais se sentem a vontade para falar de história, que seria o das artes e da literatura, Ginzburg tece uma desconcertante crítica a idéia de que o discurso histórico está no mesmo patamar do discurso ficcional, próprio dos romances, evidenciando como desde uma tradição que remonta a Aristóteles na Antiguidade, a idéia de retórica não é incompatível com a noção de prova, pois esse é o elemento que na narrativa historiográfica faz vir à tona as tensões entre narração, documentação e os chamados princípios de realidade.

2 Uma obra praticamente consagrada por críticos e historiadores, Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República, é um excelente referencial para quem quiser dar inicio a explorações sobre as relações entre literatura e sociedade no contexto da Belle Époque brasileira.

20 RIO, 2007, p. 145

21 CHALHOUB, op. cit, p. 53

23 RIO, 2007, p. 147

3 Para uma compreensão sobre de que forma as adversidades enfrentadas por Lima Barreto no campo da vida pessoal fluíram para sua literatura em forma de indignação e protesto, transformando sua escrita em um instrumento de combate aos preconceitos sociais e de denúncia dos valores excludentes de seu tempo, sugiro a obra A vida de Lima Barreto (1881-1922) de seu principal biografo; Francisco de Assis Barbosa que preocupou-se em levar para a elitizada Academia Brasileira de Letras a memória desse tocante escritor quixotesco.

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