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quinta-feira, 3 de junho de 2010

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - POESIAS E ÁUDIOS EM MP3





SUGESTÃO: OUÇA AS POESIAS RECITADAS PELO PROPRIO DRUMMOND ANTES DE BAIXÁ-LAS



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - JOSÉ



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - MUNDO GRANDE



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - MORTE DO LEITEIRO



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE – CONFISSÃO



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE – INFÂNCIA



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - NO MEIO DO CAMINHO



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE – QUADRILHA



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - MÃOS DADAS



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - VIAGEM NA FAMÍLIA



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE – A PROCURA DA POESIA



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O MITO



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O LUTADOR



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE – MEMÓRIA



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - CONSOLO NA PRAIA



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - OFICINA IRRITADA



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - FAZENDA



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - CASO DO VESTIDO



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - ESTRAMBOTE MELANCÓLICO



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O ENTERRADO VIVO



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE – DESTRUIÇÃO



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE – INTIMAÇÃO



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - PARA SEMPRE



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - CANTO DO RIO EM SOL



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE – BOITEMPO



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE – CANTIGUINHA



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - FALTA UM DISCO



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - AMOR E SEU TEMPO



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE – OBRIGADO



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - LIRA ROMANTIQUINHA



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O HOMEM, AS VIAGENS



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - ESSAS COISAS



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - PAROLAGEM DA VIDA



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - DECLARAÇÃO DE AMOR













CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - JOSÉ



José

E agora, José?

A festa acabou,

a luz apagou,

o povo sumiu,

a noite esfriou,

e agora, José?

e agora, você?

você que é sem nome,

que zomba dos outros,

você que faz versos,

que ama, protesta?

e agora, José?

Está sem mulher,

está sem discurso,

está sem carinho,

já não pode beber,

já não pode fumar,

cuspir já não pode,

a noite esfriou,

o dia não veio,

o bonde não veio,

o riso não veio,

não veio a utopia

e tudo acabou

e tudo fugiu

e tudo mofou,

e agora, José?

E agora, José?

Sua doce palavra,

seu instante de febre,

sua gula e jejum,

sua biblioteca,

sua lavra de ouro,

seu terno de vidro,

sua incoerência,

seu ódio - e agora?

Com a chave na mão

quer abrir a porta,

não existe porta;

quer morrer no mar,

mas o mar secou;

quer ir para Minas,

Minas não há mais.

José, e agora?

Se você gritasse,

se você gemesse,

se você tocasse

a valsa vienense,

se você dormisse,

se você cansasse,

se você morresse...

Mas você não morre,

você é duro, José!

Sozinho no escuro

qual bicho-do-mato,

sem teogonia,

sem parede nua

para se encostar,

sem cavalo preto

que fuja a galope,

você marcha, José!

José, para onde?











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO



Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.

Tempo de absoluta depuração.

Tempo em que não se diz mais: meu amor.

Porque o amor resultou inútil.

E os olhos não choram.

E as mãos tecem apenas o rude trabalho.

E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.

Ficaste sozinho, a luz apagou-se,

mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.

És todo certeza, já não sabes sofrer.

E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?

Teus ombros suportam o mundo

e ele não pesa mais que a mão de uma criança.

As guerras, as fomes, as discussões dentro dos

edifícios

provam apenas que a vida prossegue

e nem todos se libertaram ainda.

Alguns, achando bárbaro o espetáculo

prefeririam (os delicados) morrer.

Chegou um tempo em que não adianta morrer.

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.

A vida apenas, sem mistificação.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - MUNDO GRANDE



Não, meu coração não é maior que o mundo.

É muito menor.

Nele não cabem nem as minhas dores.

Por isso gosto tanto de me contar.

Por isso me dispo,

por isso me grito,

por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:

preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.

Só agora vejo que nele não cabem os homens.

Os homens estão cá fora, estão na rua.

A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.

Mas também a rua não cabe todos os homens.

A rua é menor que o mundo.

O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.

Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.

Viste as diferentes cores dos homens,

as diferentes dores dos homens,

sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso

num só peito de homem... sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.

Escuta a água nos vidros,

tão calma, não anuncia nada.

Entretanto escorre nas mãos,

tão calma! Vai inundando tudo...

Renascerão as cidades submersas?

Os homens submersos - voltarão?

Meu coração não sabe.

Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.

Só agora descubro

como é triste ignorar certas coisas.

(Na solidão de indivíduo

desaprendi a linguagem

com que homens se comunicam.)

Outrora escutei os anjos,

as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.

Nunca escutei voz de gente.

Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei

países imaginários, fáceis de habitar,

ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.

Meus amigos foram às ilhas.

Ilhas perdem o homem.

Entretanto alguns se salvaram e

trouxeram a notícia

de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,

entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.

Entre o amor e o fogo,

entre a vida e o fogo,

meu coração cresce dez metros e explode.

- Ó vida futura! Nós te criaremos.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - MORTE DO LEITEIRO



Há pouco leite no país,

é preciso entregá-lo cedo.

Há muita sede no país,

é preciso entregá-lo cedo.

Há no país uma legenda,

que ladrão se mata com tiro.

Então o moço que é leiteiro

de madrugada com sua lata

sai correndo e distribuindo

leite bom para gente ruim.

Sua lata, suas garrafas

e seus sapatos de borracha

vão dizendo aos homens no sono

que alguém acordou cedinho

e veio do último subúrbio

trazer o leite mais frio

e mais alvo da melhor vaca

para todos criarem força

na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca

não tem tempo de dizer

as coisas que lhe atribuo

nem o moço leiteiro ignaro,

morados na Rua Namur,

empregado no entreposto,

com 21 anos de idade,

sabe lá o que seja impulso

de humana compreensão.

E já que tem pressa, o corpo

vai deixando à beira das casas

uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos

também escondesse gente

que aspira ao pouco de leite

disponível em nosso tempo,

avancemos por esse beco,

peguemos o corredor,

depositemos o litro...

Sem fazer barulho, é claro,

que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil

de passo maneiro e leve,

antes desliza que marcha.

É certo que algum rumor

sempre se faz: passo errado,

vaso de flor no caminho,

cão latindo por princípio,

ou um gato quizilento.

E há sempre um senhor que acorda,

resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico

(ladrões infestam o bairro),

não quis saber de mais nada.

O revólver da gaveta

saltou para sua mão.

Ladrão? se pega com tiro.

Os tiros na madrugada

liquidaram meu leiteiro.

Se era noivo, se era virgem,

se era alegre, se era bom,

não sei,

é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono

de todo, e foge pra rua.

Meu Deus, matei um inocente.

Bala que mata gatuno

também serve pra furtar

a vida de nosso irmão.

Quem quiser que chame médico,

polícia não bota a mão

neste filho de meu pai.

Está salva a propriedade.

A noite geral prossegue,

a manhã custa a chegar,

mas o leiteiro

estatelado, ao relento,

perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada,

no ladrilho já sereno

escorre uma coisa espessa

que é leite, sangue... não sei.

Por entre objetos confusos,

mal redimidos da noite,

duas cores se procuram,

suavemente se tocam,

amorosamente se enlaçam,

formando um terceiro toma

que chamamos aurora।











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - CONFISSÃO



Não amei bastante meu semelhante,

não catei o verme nem curei a sarna.

Só proferi algumas palavras,

melodiosas, tarde , ao voltar da festa.

Dei sem dar e beijei sem beijo.

(Cego é talvez quem esconde os olhos

embaixo do catre.) E na meia-luz

tesouros fanam-se, os mais excelentes.

Do que restou, como compor um homem

e tudo o que ele implica de suave,

de concordâncias vegetais, múrmurios

de riso, entrega, amor e piedade?

Não amei bastante sequer a mim mesmo,

contudo próximo. Não amei ninguém.

Salvo aquele pássaro -vinha azul e doido-

que se esfacelou na asa do avião.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - INFÂNCIA



Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.

Minha mãe ficava sentada cosendo.

Meu irmão pequeno dormia.

Eu sozinho menino entre mangueiras.

lia a história de Robinson Crusoé,

comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu

a ninar nos longes da senzala - nunca se esqueceu

chamava para o café.

Café preto que nem a preta velha

café gostoso

café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo

olhando para mim:

- Psiu...Não acorde o menino.

Para o berço onde pousou um mosquito.

E dava um suspiro...que fundo!

Lá longe meu pai campeava

no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história

era mais bonita que a de Robinson Crusoé.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - NO MEIO DO CAMINHO



No meio do caminho tinha uma pedra

Tinha uma pedra no meio do caminho

Tinha uma pedra

No meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento

Na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

Tinha uma pedra

Tinha uma pedra no meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO



Alguns anos vivi em Itabira.

Principalmente nasci em Itabira.

Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.

Noventa por cento de ferro nas calçadas.

Oitenta por cento de ferro nas almas.

E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,

vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,

é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:

esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,

este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;

este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;

este orgulho, esta cabeça baixa...

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.

Hoje sou funcionário público.

Itabira é apenas uma fotografia na parede.

Mas como dói!











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - QUADRILHA



João amava Teresa que amava Raimundo

que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili

que não amava ninguém.

João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,

Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes

que não tinha entrado na história











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - MÃOS DADAS



Não serei o poeta de um mundo caduco.

Também não cantarei o mundo futuro.

Estou preso à vida e olho meus companheiros.

Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.

Entre eles, considero a enorme realidade.

O presente é tão grande, não nos afastemos.

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,

não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,

não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,

não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,

a vida presente.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - VIAGEM NA FAMÍLIA



No deserto de Itabira

a sombra de meu pai

tomou-me pela mão.

Tanto tempo perdido.

Porém nada dizia.

Não era dia nem noite.

Suspiro? Voo de pássaro?

Porém nada dizia.



Longamente caminhamos.

Aqui havia uma casa.

A montanha era maior.

Tantos mortos amontoados,

o tempo roendo os mortos.

E nas casas em ruína,

desprezo frio, humidade.

Porém nada dizia.



A rua que atravessava

a cavalo, de galope.

Seu relógio. Sua roupa.

Seus papéis de circunstância.

Suas histórias de amor.

Há um abrir de baús

e de lembranças violentas.

Porém nada dizia.



No deserto de Itabira

as coisas voltam a existir,

irrespiráveis e súbitas.

O mercado de desejos

expõe seus tristes tesouros;

meu anseio de fugir;

mulheres nuas; remorso.

Porém nada dizia.



Pisando livros e cartas,

viajamos na família.

Casamentos; hipotecas;

os primos tuberculosos;

a tia louca; minha avó

traída com as escravas,

rangendo sedas na alcova.

Porém nada dizia.



Que cruel, obscuro instinto

movia sua mão pálida

subtilmente nos empurrando

pelo tempo e pelos lugares

defendidos?

Olhei-o nos olhos brancos.

Gritei-lhe: Fala! Minha voz

vibrou no ar um momento,

bateu nas pedras. A sombra

prosseguia devagar

aquela viagem patética

através do reino perdido.

Porém nada dizia.



Vi mágoa, incompreensão

e mais de uma velha revolta

a dividir-nos no escuro.

A mão que eu não quis beijar,

o prato que me negaram,

recusa em pedir perdão.

Orgulho. Terror nocturno.

Porém nada dizia.



Fala fala fala fala.

Puxava pelo casaco

que se desfazia em barro.

Pelas mãos, pelas botinas

prendia a sombra severa

e a sombra se desprendia

sem fuga nem reacção.

Porém ficava calada.



E eram distintos silêncios

que se entranhavam no seu.

Era meu avô já surdo

querendo escutar as aves

pintadas no céu da igreja;

a minha falta de amigos;

a sua falta de beijos;

eram nossas difíceis vidas

e uma grande separação

na pequena área do quarto.



A pequena área da vida

me aperta contra o seu vulto,

e nesse abraço diáfano

é como se eu me queimasse

todo, de pungente amor.

Só hoje nos conhecermos!

Óculos, memórias, retratos

fluem no rio do sangue.

As águas já não permitem

distinguir seu rosto longe,

para lá de setenta anos...

Senti que me perdoava

porém nada dizia.



As águas cobrem o bigode,

a família, Itabira, tudo.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - PROCURA DA POESIA



Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

Diante dela, a vida é um sol estático,

não aquece nem ilumina.

As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.

Não faças poesia com o corpo,

esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro

são indiferentes.

Nem me reveles teus sentimentos,

que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.

O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.

O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.

Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza

nem os homens em sociedade.

Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.

A poesia (não tires poesia das coisas)

elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,

não indagues. Não percas tempo em mentir.

Não te aborreças.

Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,

vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família

desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas

tua sepultada e merencória infância.

Não osciles entre o espelho e a

memória em dissipação.

Que se dissipou, não era poesia.

Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intata.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.

Espera que cada um se realize e consume

com seu poder de palavra

e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceita-o

como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada

no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?

Repara:

ermas de melodia e conceito

elas se refugiaram na noite, as palavras.

Ainda úmidas e impregnadas de sono,

rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O MITO



Sequer conheço fulana,

Vejo fulana tão curto

Fulana jamais me vê,

Mas como amo fulana.

Amarei mesmo fulana?

Ou é ilusão de sexo?

Talvez a linha do busto,

Da perna, talvez o ombro.

Amo fulana tão forte,

Amo fulana tão dor,

Que todo me despedaço

E choro,menino, choro

Mas fulana vai se rindo...

Vejam fulana dançando

No esporte ele está sozinha

No bar, quão acompanhada.

E fulana diz mistérios,

Diz marxismo, rimmel, gás.

Fulana me bombardeia,

No entanto sequer me vê.

E sequer nos compreendemos,

É dama de alta fidúcia,

Tem latifúndios, iates,

Sustenta cinco mil pobres,

Menos eu...que de orgulhoso

Me basto pensando nela

Pensando com unha, plasma,

Fúria, gilete, desânimo.

Amor tão disparatado,

Desbaratado é que é...

Nunca a sentei no meu colo

Nem vi pela fechadura.

Mas sei quanto me custa

Manter esse gelo digno,

Essa indiferença gaia, e não gritar:vem, fulana!

Como deixar de invadir

Sua casa de mil fechos

E sua veste arrancando

Mostrá-la depois ao povo

Tal como deve ser:

Branca, intata, neutra, rara,

Feita de pedera translúcida,

De ausência e ruivos ornatos.

Mas como será fulana,

Digamos, no seu banheiro?

Só de pensar em seu corpo,

O meu se punge...pois sim.

Porque preciso do corpo

Para mendigar fulana,

Rogar-lhe que pise em mim,

Que me maltrate...assim não.

Mas fulana será gente?

Estará somente em ópera?

Será figura de livros?

Será bicho? saberei?

Não saberei? só pegando,

Pedindo: dona, desculpe,

O seu vestido, esconde algo?

Tem coxas reais? cintura?

Fulana às vêzes existe

Demais: até me apavora.

Vou sozinho pela rua,

Eis que fulana me roça.

Mas não quero nada disso.

Para que chatear fulana?

Pancada na sua nuca

Na minha que vai doer.

E daí não sou criança

Fulana estudo meu rosto

Coitado: de raça branca

Tadinho: tinha gravata

Já morto, me quererá?

Esconjuro, se é necrófila...

Fulana é vida, ama as flores,

As artérias e as debêntures.

Sei que jamais me perdoara

Matar-me para servi-la.

Fulana quer homens fortes

Couraçados, invasores.

Fulana é tão dinâmica

Tem um motor na barriga.

Suas unhas são elétricas,

Seus beijos refrigerados,

Desinfetados, gravados

Em máquina multilite.

Fulana, como é sadia!

Os enfermos somos nós.

Sou eu, o poeta precário

Que fêz de fulana um mito

Nutrindo-me de petrarca,

Ronsard, camões e capim;

Que a sei embebida em leite,

Carne, tomate, ginástica

E lhe colo metafísicas,

Enigmas, causas primeiras.

Mas, se tentasse construir

Outra fulana que não

Essa de burguês sorisso

E de tão burro esplendor?

Mudo-lhe o nome: recorto-lhe

Um traje de transparência;

Já perde a carência humana

E bato-a; de tirar sangue.

E lhe dou todas as faces

De meu sonho que especula;

E abolimos a cidade

Já sem peso e nitidez.

E vadeamos a ciência,

Mar de hipóteses.a lua

Fica sendo nosso esquema

De um território mais justo.

E colocamos os dados

De um mundo sem classe e imposto;

E nesse mundo instalamos

Os nossos irmãos vingados:

E nessa fase gloriosa,

De contradições extintas,

Eu e fulana, abrasados,

Queremos...que mais queremos?

E digo a fulana: amiga,

Afinal nos compreendemos.

Já não sofro, já não brilhas,

Mas somos a mesma coisa

( uma coisa tão diversa da que pensava que fossemos.)











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O LUTADOR



Lutar com palavras

é a luta mais vã.

Entanto lutamos

mal rompe a manhã.

São muitas, eu pouco.

Algumas, tão fortes

como o javali.

Não me julgo louco.

Se o fosse, teria

poder de encantá-las.

Mas lúcido e frio,

apareço e tento

apanhar algumas

para meu sustento

num dia de vida.

Deixam-se enlaçar,

tontas à carícia

e súbito fogem

e não há ameaça

e nem 3 há sevícia

que as traga de novo

ao centro da praça.

Insisto, solerte.

Busco persuadi-las.

Ser-lhes-ei escravo

de rara humildade.

Guardarei sigilo

de nosso comércio.

Na voz, nenhum travo

de zanga ou desgosto.

Sem me ouvir deslizam,

perpassam levíssimas

e viram-me o rosto.

Lutar com palavras

parece sem fruto.

Não têm carne e sangue…

Entretanto, luto.

Palavra, palavra

(digo exasperado),

se me desafias,

aceito o combate.

Quisera possuir-te

neste descampado,

sem roteiro de unha

ou marca de dente

nessa pele clara.

Preferes o amor

de uma posse impura

e que venha o gozo

da maior tortura.

Luto corpo a corpo,

luto todo o tempo,

sem maior proveito

que o da caça ao vento.

Não encontro vestes,

não seguro formas,

é fluido inimigo

que me dobra os músculos

e ri-se das normas

da boa peleja.

Iludo-me às vezes,

pressinto que a entrega

se consumará.

Já vejo palavras

em coro submisso,

esta me ofertando

seu velho calor,

aquela sua glória

feita de mistério,

outra seu desdém,

outra seu ciúme,

e um sapiente amor

me ensina a fruir

de cada palavra

a essência captada,

o sutil queixume.

Mas ai! é o instante

de entreabrir os olhos:

entre beijo e boca,

tudo se evapora.

O ciclo do dia

ora se conclui 8

e o inútil duelo

jamais se resolve.

O teu rosto belo,

ó palavra, esplende

na curva da noite

que toda me envolve.

Tamanha paixão

e nenhum pecúlio.

Cerradas as portas,

a luta prossegue

nas ruas do sono.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - MEMÓRIA



Amar o perdido

deixa confundido

este coração.

Nada pode o olvido

contra o sem sentido

apelo do Não.

As coisas tangíveis

tornam-se insensíveis

à palma da mão.

Mas as coisas findas,

muito mais que lindas,

essas ficarão.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - CONSOLO NA PRAIA



Vamos, não chores.

A infância está perdida.

A mocidade está perdida.

Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.

O segundo amor passou.

O terceiro amor passou.

Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.

Não tentaste qualquer viagem.

Não possuis carro, navio, terra.

Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,

em voz mansa, te golpearam.

Nunca, nunca cicatrizam.

Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.

À sombra do mundo errado

murmuraste um protesto tímido.

Mas virão outros.

Tudo somado, devias

precipitar-te, de vez, nas águas.

Estás nu na areia, no vento...

Dorme, meu filho.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - OFICINA IRRITADA



Eu quero compor um soneto duro

Como poeta algum ousara escrever.

Eu quero pintar um soneto escuro,

Seco, abafado, difícil de ler.

Quero que meu soneto, no futuro,

Não desperte em ninguém nenhum prazer.

E que, no seu maligno ar imaturo,

Ao mesmo tempo saiba ser, não ser.

Esse meu verbo antipático e impuro

Há de pungir, há de fazer sofrer,

Tendão de vênus sob o pedicuro.

Ninguém o lembrará: tiro no muro,

Cão mijando no caos, enquanto arcturo,

Claro enigma, se deixa surpreender.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - FAZENDA



Vejo o Retiro: suspiro

no vale fundo.

O Retiro ficava longe

do oceanomundo.

Ninguém sabia da Rússia

com sua foice.

A morte escolhia a forma

breve de um coice.

Mulher, abundavam negras

socando milho.

Rês morta, urubus rasantes,

logo em concílio.

O amor das éguas rinchava

no azul do pasto.

E criação e gente, em liga,

tudo era casto.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - CASO DO VESTIDO



Nossa mãe, o que é aquele

vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido

de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?

Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.

Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, dizei depressa

que vestido é esse vestido.

Minhas filhas, mas o corpo

ficou frio e não o veste.

O vestido, nesse prego,

está morto, sossegado.

Nossa mãe, esse vestido

tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai

palavras de minha boca.

Era uma dona de longe,

vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,

se perdeu tanto de nós,

se afastou de toda vida,

se fechou, se devorou,

chorou no prato de carne,

bebeu, brigou, me bateu,

me deixou com vosso berço,

foi para a dona de longe,

mas a dona não ligou.

Em vão o pai implorou.

Dava apólice, fazenda,

dava carro, dava ouro,

beberia seu sobejo,

lamberia seu sapato.

Mas a dona nem ligou.

Então vosso pai, irado,

me pediu que lhe pedisse,

a essa dona tão perversa,

que tivesse paciência

e fosse dormir com ele...

Nossa mãe, por que chorais?

Nosso lenço vos cedemos.

Minhas filhas, vosso pai

chega ao pátio. Disfarcemos.

Nossa mãe, não escutamos

pisar de pé no degrau.

Minhas filhas, procurei

aquela mulher do demo.

E lhe roguei que aplacasse

de meu marido a vontade.

Eu não amo teu marido,

me falou ela se rindo.

Mas posso ficar com ele

se a senhora fizer gosto,

só pra lhe satisfazer,

não por mim, não quero homem.

Olhei para vosso pai,

os olhos dele pediam.

Olhei para a dona ruim,

os olhos dela gozavam.

O seu vestido de renda,

de colo mui devassado,

mais mostrava que escondia

as partes da pecadora.

Eu fiz meu pelo-sinal,

me curvei... disse que sim.

Sai pensando na morte,

mas a morte não chegava.

Andei pelas cinco ruas,

passei ponte, passei rio,

visitei vossos parentes,

não comia, não falava,

tive uma febre terçã,

mas a morte não chegava.

Fiquei fora de perigo,

fiquei de cabeça branca,

perdi meus dentes, meus olhos,

costurei, lavei, fiz doce,

minhas mãos se escalavraram,

meus anéis se dispersaram,

minha corrente de ouro

pagou conta de farmácia.

Vosso pais sumiu no mundo.

O mundo é grande e pequeno.

Um dia a dona soberba

me aparece já sem nada,

pobre, desfeita, mofina,

com sua trouxa na mão.

Dona, me disse baixinho,

não te dou vosso marido,

que não sei onde ele anda.

Mas te dou este vestido,

última peça de luxo

que guardei como lembrança

daquele dia de cobra,

da maior humilhação.

Eu não tinha amor por ele,

ao depois amor pegou.

Mas então ele enjoado

confessou que só gostava

de mim como eu era dantes.

Me joguei a suas plantas,

fiz toda sorte de dengo,

no chão rocei minha cara,

me puxei pelos cabelos,

me lancei na correnteza,

me cortei de canivete,

me atirei no sumidouro,

bebi fel e gasolina,

rezei duzentas novenas,

dona, de nada valeu:

vosso marido sumiu.

Aqui trago minha roupa

que recorda meu malfeito

de ofender dona casada

pisando no seu orgulho.

Recebei esse vestido

e me dai vosso perdão.

Olhei para a cara dela,

quede os olhos cintilantes?

quede graça de sorriso,

quede colo de camélia?

quede aquela cinturinha

delgada como jeitosa?

quede pezinhos calçados

com sandálias de cetim?

Olhei muito para ela,

boca não disse palavra.

Peguei o vestido, pus

nesse prego da parede.

Ela se foi de mansinho

e já na ponta da estrada

vosso pai aparecia.

Olhou pra mim em silêncio,

mal reparou no vestido

e disse apenas: - Mulher,

põe mais um prato na mesa.

Eu fiz, ele se assentou,

comeu, limpou o suor,

era sempre o mesmo homem,

comia meio de lado

e nem estava mais velho.

O barulho da comida

na boca, me acalentava,

me dava uma grande paz,

um sentimento esquisito

de que tudo foi um sonho,

vestido não há... nem nada.

Minhas filhas, eis que ouço

vosso pai subindo a escada.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - ESTRAMBOTE MELANCÓLICO



Tenho saudade de mim mesmo,

saudade sob aparência de remorso,

de tanto que não fui, a sós, a esmo,

e de minha alta ausência em meu redor.

Tenho horror, tenho pena de mim mesmo

e tenho muitos outros sentimentos

violentos. Mas se esquivam no inventário,

e meu amor é triste como é vário,

e sendo vário é um só. Tenho carinho

por toda perda minha na corrente

que de mortos a vivos me carreia

e a mortos restitui o que era deles

mas em mim se guardava. A estrela-d'alva

penetra longamente seu espinho

(e cinco espinhos são) na minha mão.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O ENTERRADO VIVO



É sempre no passado aquele orgasmo,

é sempre no presente aquele duplo,

é sempre no futuro aquele pânico.

É sempre no meu peito aquela garra.

É sempre no meu tédio aquele aceno.

É sempre no meu sono aquela guerra.

É sempre no meu trato o amplo distrato.

Sempre na minha firma a antiga fúria.

Sempre no mesmo engano outro retrato.

É sempre nos meus pulos o limite.

É sempre nos meus lábios a estampilha.

É sempre no meu não aquele trauma.

Sempre no meu amor a noite rompe.

Sempre dentro de mim meu inimigo.

E sempre no meu sempre a mesma ausência.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - DESTRUIÇÃO



Os amantes se amam cruelmente

e com se amarem tanto não se vêem.

Um se beija no outro, refletido.

Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados

pelo mimo de amar: e não percebem

quanto se pulverizam no enlaçar-se,

e como o que era mundo volve a nada.

Nada, ninguém. Amor, puro fantasma

que os passeia de leve, assim a cobra

se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.

Deixaram de existir mas o existido

continua a doer eternamente.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - INTIMAÇÃO



Abre em nome da lei.

Em nome de que lei?

Acaso lei sem nome?

Em nome de que nome

cujo agora me some

se em sonho o soletrei?

Abre em nome do rei.

Em nome de que rei

é a porta arrombada

para entrar o aguazil

que na destra um papel

sinistramente branco

traz, e ao ombro o fuzil?

Abre em nome de til.

Abre em nome de abrir,

em nome de poderes

cujo vago pseudónimo

não é de conferir:

cifra oblíqua na bula

ou dobra na cogula

de inexistente frei.

Abre em nome da lei.

Abre sem nome e lei.

Abre mesmo sem rei.

Abre sózinho ou grei.

Não, não abras; à força

de intimar-te repara:

eu já te desventrei.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - PARA SEMPRE



Por que Deus permite

que as mães vão-se embora?

Mãe não tem limite,

é tempo sem hora,

luz que não apaga

quando sopra o vento

e chuva desaba,

veludo escondido

na pele enrugada,

água pura, ar puro,

puro pensamento.

Morrer acontece

com o que é breve e passa

sem deixar vestígio.

Mãe, na sua graça,

é eternidade.

Por que Deus se lembra

- mistério profundo -

de tirá-la um dia?

Fosse eu Rei do Mundo,

baixava uma lei:

Mãe não morre nunca,

mãe ficará sempre

junto de seu filho

e ele, velho embora,

será pequenino

feito grão de milho.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - CANTO DO RIO EM SOL



I



Guanabara, seio, braço

de a-mar:

em teu nome, a sigla rara

dos tempos do verbo mar.

Os que te amamos sentimos

e não sabemos cantar:

o que é sombra do Silvestre

sol da Urca

dengue flamingo

mitos da Tijuca de Alencar.

Guanabara, saia clara

estufando em redondel:

que é carne, que é terra e alísio

em teu crisol?

Nunca vi terra tão gente

nem gente tão florival.

Teu frêmito é teu encanto

(sem decreto) capital.

Agora, que te fitamos

nos olhos,

e que neles pressentimos

o ser telúrico, essencial,

agora sim és Estado

de graça, condado real.



II



Rio, nome sussurrante,

Rio que te vais passando

a mar de estórias e sonhos

e em teu constante janeiro

corres pela nossa vida

como sangue, como seiva

-- não são imagens exangues

como perfume na fronha

... como pupila do gato

risca o topázio no escuro.

Rio-tato-

-vista-gosto-risco-vertigem

Rio-antúrio

Rio das quatro lagoas

de quatro túneis irmãos

Rio em ã

Maracanã

Sacopenapã

Rio em ol em amba em umba sobretudo em inho

de amorzinho

benzinho

dá-se um jeitinho

do saxofone de Pixinguinha chamando pela Velha Guarda

como quem do alto do Morro Cara de Cão

chama pelos tamoios errantes em suas pirogas

Rio, milhão de coisas

luminosardentissuavimariposas:

como te explicar à luz da Constituição?



III



Irajá Pavuna Ilha do Gato

-- emudeceram as aldeias gentílicas?

A Festa das Canoas dispersou-se?

Junto ao Paço já não se ouve o sino de São José

pastoreando os fiéis da várzea?

Soou o toque do Aragão sobre a cidade?

Não não não não não não não

Rio, mágico, dás uma cabriola,

teu desenho no ar é nítido como os primeiros grafismos,

teu acordar, um feixe de zínias na correnteza esperta do tempo

o tempo que humaniza e jovializa as cidades.

Rio novo a cada menino que nasce

a cada casamento

a cada namorado

que te descobre enquanto rio-rindo.

assistes ao pobre fluir dos homens e de suas glórias pré-fabricadas.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - BOITEMPO



Entardece na roça

de modo diferente.

A sombra vem nos cascos,

no mugido da vaca

separada da cria.

O gado é que anoitece

e na luz que a vidraça

da casa fazendeira

derrama no curral

surge multiplicada

sua estátua de sal,

escultura da noite.

Os chifres delimitam

o sono privativo

de cada rês e tecem

de curva em curva a ilha

do sono universal.

No gado é que dormimos

e nele que acordamos.

Amanhece na roça

de modo diferente.

A luz chega no leite,

morno esguicho das tetas

e o dia é um pasto azul

que o gado reconquista.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - CANTIGUINHA



Era um brinquedo Maria

Era uma estória Maria

Era uma nuvem Maria

Era uma graça Maria

Era um bocado Maria

Era um mar de amor Maria

Era uma vez era um dia

Maria.









CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - FALTA UM DISCO



Amor,

Estou triste porque

Sou o único brasileiro vivo

Que nunca viu um disco voador.

Na minha rua todos viram

E falaram com seus tripulantes

Na língua misturada de carioca

E de sinais verdes luminescentes

Que qualquer um entende, pois não?

Entraram a bordo (convidados)

Voaram por aí

Por ali, por além

Sem necessidade de passaporte

E certidão negativa de ir,

Sem dólares, amor, sem dólares.

Voltaram cheios de notícias

E de superioridade.

Olham-me com desprezo benévolo.

Sou o pária,

Aquele que vê apenas caminhão

Cartaz de cinema, buraco na rua

& outras evidências pedestres.

Um amigo que eu tenho

Todas as semanas vai ver o seu disco

Na praia de Itaipu.

Este não diz nada para mim,

De boca, mas o jeito,

Os olhos! contam de prodígios

Tornados simples de tão semanais

Apenas secretos para quem não é

Capaz de ouvir e de entender um disco.

Por que a mim, somente a mim

Recusa-se o ovni?

Talvez para que a sigla

De todo não se perca, pois enfim

Nada existe de mais identificado

Do que um disco voador hoje presente

Em são Paulo, Bahia

Barra da tijuca e barra mansa.

(os pastores desta aldeia

Já me fazem zombaria

Pois procuro, em vão procuro

Noite e dia

O zumbido, a forma, a cor

De um só disco voador.)

Bem sei que em toda parte

Eles circulam: nas praias

No infinito céu hoje finito

Até no sítio de um outro amigo em Teresópolis.

Bem sei e sofro

Com a falta de confiança neste poeta

Que muita coisa viu extraterrena

Em sonhos e acordado

Viu sereias, dragões

O príncipe das trevas

A aurora boreal encarnada em mulher

Os sete arcanjos de congonhas da luz

E doces almas do outro mundo em procissão.

Mas o disco, o disco?

Ele me foge e ri

De minha busca.

Um passou bem perto (contam)

Quase a me roçar. não viu? não vi.

Dele desceu (parece)

Um sujeitinho furta-cor gentil

Puxou-me pelo braço: vamos (ou: plnx),

Talvez...?

Isso me garantem meus vizinhos

E eu, chamado não chamado

Insensível e cego sem ouvidos

Deixei passar a minha vez.

Amor, estou tristinho, estou tristonho

Por ser o só

Que nunca viu um disco voador

Hoje comum na rua do ouvidor.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - AMOR E SEU TEMPO



Amor é privilégio de maduros

Estendidos na mais estreita cama,

Que se torna a mais larga e mais relvosa,

Roçando, em cada poro, o céu do corpo.

É isto, amor: o ganho não previsto,

O prêmio subterrâneo e coruscante,

Leitura de relâmpago cifrado,

Que, decifrado, nada mais existe

Valendo a pena e o preço do terrestre,

Salvo o minuto de ouro no relógio

Minúsculo, vibrando no crepúsculo.

Amor é o que se aprende no limite,

Depois de se arquivar toda a ciência

Herdada, ouvida. amor começa tarde.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - OBRIGADO



Aos que me dão lugar no bonde

E que conheço não sei de onde,

Aos que me dizem terno adeus

Sem que lhes saiba os nomes seus,

Aos que me chamam de deputado

Quando nem mesmo sou jurado,

Aos que, de bons, se babam: mestre!

Inda se escrevo o que não preste,

Aos que me julgam primo-irmão

Do rei da fava ou do hindustão,

Aos que me pensam milionário

Se pego aumento de salário

- e aos que me negam cumprimento

Sem o mais mínimo argumento,

Aos que não sabem que eu existo,

Até mesmo quando os assisto.

Aos que me trancam sua cara

De carinho alérgica e avara,

Aos que me tacham de ultrabeócia

A pretensão de vir da escócia,

Aos que vomitam (sic) meus poemas

Nos mais simples vendo problemas,

Aos que, sabendo-me mais pobre,

Me negariam pano ou cobre

- eu agradeço humildemente

Gesto assim vário e divergente,

Graças ao qual, em dois minutos,

Tal como o fumo dos charutos,

Já subo aos céus, já volvo ao chão,

Pois tudo e nada nada são.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - LIRA ROMANTIQUINHA



Por que me trancas

o rosto e o sorriso

e assim me arrancas

do paraíso?

por que não queres

deixando o alarme

(ai, Deus: mulheres)

acarinhar-me?

Por que cultivas

as sem-perfumes

e agressivas

flores do ciúme?

Acaso ignoras

que te amo tanto,

todas as horas,

já nem sei quanto?

Visto que em suma

é todo teu,

de mais nenhuma

o peito meu?

Anjo sem fé

nas minhas juras

porque é que é

que me angusturas?

Minh'alma chora

frio e tristinho

não te comove

este versinho?











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O HOMEM, AS VIAGENS



O homem, bicho da terra tão pequeno

Chateia-se na terra

Lugar de muita miséria e pouca diversão,

Faz um foguete, uma cápsula, um módulo

Toca para a lua

Desce cauteloso na lua

Pisa na lua

Planta bandeirola na lua

Experimenta a lua

Coloniza a lua

Civiliza a lua

Humaniza a lua.

Lua humanizada: tão igual à terra.

O homem chateia-se na lua.

Vamos para marte - ordena a suas máquinas.

Elas obedecem, o homem desce em marte

Pisa em marte

Experimenta

Coloniza

Civiliza

Humaniza marte com engenho e arte.

Marte humanizado, que lugar quadrado.

Vamos a outra parte?

Claro - diz o engenho

Sofisticado e dócil.

Vamos a vênus.

O homem põe o pé em vênus,

Vê o visto - é isto?

Idem

Idem

Idem.

O homem funde a cuca se não for a júpiter

Proclamar justiça junto com injustiça

Repetir a fossa

Repetir o inquieto

Repetitório.

Outros planetas restam para outras colônias.

O espaço todo vira terra-a-terra.

O homem chega ao sol ou dá uma volta

Só para tever?

Não-vê que ele inventa

Roupa insiderável de viver no sol.

Põe o pé e:

Mas que chato é o sol, falso touro

Espanhol domado.

Restam outros sistemas fora

Do solar a col-

Onizar.

Ao acabarem todos

Só resta ao homem

(estará equipado?)

A dificílima dangerosíssima viagem

De si a si mesmo:

Pôr o pé no chão

Do seu coração

Experimentar

Colonizar

Civilizar

Humanizar

O homem

Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas

A perene, insuspeitada alegria

De con-viver.











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - ESSAS COISAS



"Você não está mais na idade

de sofrer por essas coisas."



Há então a idade de sofrer

e a de não sofrer mais

por essas, essas coisas?



As coisas só deviam acontecer

para fazer sofrer

na idade própria de sofrer?



Ou não se devia sofrer

pelas coisas que causam sofrimento

pois vieram fora de hora, e a hora é calma?



E se não estou mais na idade de sofrer

é porque estou morto, e morto

é a idade de não sentir as coisas, essas coisas?











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - PAROLAGEM DA VIDA



Como a vida muda.

Como a vida é muda.

Como a vida é nula.

Como a vida é nada.

Como a vida é tudo.

Tudo que se perde

mesmo sem ter ganho.

Como a vida é senha

de outra vida nova

que envelhece antes

de romper o novo.

Como a vida é outra

sempre outra, outra

não a que é vivida.

Como a vida é vida

ainda quando morte

esculpida em vida.

Como a vida é forte

em suas algemas.

Como dói a vida

quando tira a veste

de prata celeste.

Como a vida é isto

misturado àquilo.

Como a vida é bela

sendo uma pantera

de garra quebrada.

Como a vida é louca

estúpida, mouca

e no entanto chama

a torrar-se em chama.

Como a vida chora

de saber que é vida

e nunca nunca nunca

leva a sério o homem,

esse lobisomem.

Como a vida ri

a cada manhã

de seu próprio absurdo

e a cada momento

dá de novo a todos

uma prenda estranha.

Como a vida joga

de paz e de guerra

povoando a terra

de leis e fantasmas.

Como a vida toca

seu gasto realejo

fazendo da valsa

um puro Vivaldi.

Como a vida vale

mais que a própria vida

sempre renascida

em flor e formiga

em seixo rolado

peito desolado











CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - DECLARAÇÃO DE AMOR



Minha flor minha flor minha flor.

Minha prímula meu pelargônio meu gladíolo meu botão-de-ouro.

Minha peônia.

Minha cinerária minha calêndula minha boca-de-leão.

Minha gérbera.

Minha clívia.

Meu cimbídio.

Flor flor flor.

Floramarílis. floranêmona. florazálea. clematite minha.

Catléia delfínio estrelítzia.

Minha hortensegerânea.

Ah, meu nenúfar. rododendro e crisântemo e junquilho meus. meu ciclâmen. macieira-minha-do-japão.

Calceolária minha.

Daliabegônia minha. forsitiaíris tuliparrosa minhas.

Violeta... amor-mais-que-perfeito.

Minha urze. meu cravo-pessoal-de-defunto.

Minha corola sem cor e nome no chão de minha morte.















EU ETIQUETA



Em minha calça está grudado um nome

que não é meu de batismo ou de cartório,

um nome... estranho.

Meu blusão traz lembrete de bebida

que jamais pus na boca, nesta vida.

Em minha camiseta, a marca de cigarro

que não fumo, até hoje não fumei.

Minhas meias falam de produto

que nunca experimentei

mas são comunicados a meus pés.

Meu tênis é proclama colorido

de alguma coisa não provada

por este provador de longa idade.

Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,

minha gravata e cinto e escova e pente,

meu copo, minha xícara,

minha toalha de banho e sabonete,

meu isso, meu aquilo,

desde a cabeça ao bico dos sapatos,

são mensagens,

letras falantes,

gritos visuais,

ordens de uso, abuso, reincidência,

costume, hábito, premência,

indispensabilidade,

e fazem de mim homem-anúncio itinerante,

escravo da matéria anunciada.

Estou, estou na moda.

É doce estar na moda, ainda que a moda

seja negar minha identidade,

trocá-la por mil, açambarcando

todas as marcas registradas,

todos os logotipos de mercado.

Com que inocência demito-me de ser

eu que antes era e me sabia

tão diverso dos outros, tão mim-mesmo,

ser pensante, sentinte e solitário

com outros seres diversos e conscientes

de sua humana invencível condição.

Agora sou anúncio,

ora vulgar, ora bizarro,

em língua nacional ou em qualquer língua

(qualquer, principalmente).

E nisto me comprazo, tiro glória

de minha anulação.

Não sou - vê lá - anúncio contratado.

Eu é que mimosamente pago

para anunciar, para vender

em bares, festas, praias, pérgulas, piscinas,

e bem à vista exibo esta etiqueta

global no corpo que desiste

de ser veste e sandália de uma essência

tão viva, independente,

que moda ou suborno algum a compromete.

Onde terei jogado fora

meu gosto e capacidade de escolher,

minhas idiossincrasias tão pessoais,

tão minhas que no rosto se espelhavam,

e cada gesto, cada olhar,

cada vinco da roupa

resumia uma estética?

Hoje sou costurado, sou tecido,

sou gravado de forma universal,

saio de estamparia, não de casa,

da vitrine me tiram, recolocam,

objeto pulsante mas objeto

que se oferece como signo dos outros

objetos estáticos, tarifados.

Por me ostentar assim, tão orgulhoso

de ser não eu, mas artigo industrial,

peço que meu nome retifiquem.

Já não me convém o título de homem,

meu nome novo é coisa.

Eu sou a coisa, coisamente.

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