terça-feira, 20 de dezembro de 2011
Mário de Andrade: “Marchem com as multidões!”
Por Mário de
Andrade*
Em outubro,
Mário completaria cem anos. Alma do movimento modernista de 1922, foi também
seu crítico severo.
É difícil
encontrar um lugar na cultura brasileira moderna que não tenha sido palmilhado
por Mário de Andrade, cujo centenário se comemora no dia 9 de outubro. Poeta,
romancista, folclorista, etnólogo, musicista, jornalista, criador de
bibliotecas (a Biblioteca Municipal de São Paulo leva seu nome justamente
devido ao empenho de Mário de Andrade em sua modernização, isso lá pelos anos
1940), de conservatórios musicais, um batalhador pela democratização da
cultura, ousado, que chegou mesmo a planejar (em 1929) uma Enciclopédia
Brasileira, alheio às dificuldades editoriais que fatalmente tal projeto
enfrentaria. Mário de Andrade foi, fundamentalmente, um lutador pela
independência e autonomia da cultura brasileira.
Considerado
por muitos como alma do movimento modernista de 1922, Mário de Andrade mais
tarde foi um crítico das tendências cristalizadas naquele evento. Crítica que
ficou registrada numa conferência pronunciada em 1942, em comemoração aos vinte
anos da Semana. Ali, fala do modernismo no Brasil como “uma ruptura”, “uma
revolta contra o que era a Inteligência nacional”, mas diz que “o espírito
modernista e suas modas foram diretamente importados da Europa”. Lembra a
origem do grupo de intelectuais e artistas, que se reuniam na casa da rua Lopes
Chaves, em São Paulo (onde hoje funciona o Museu da Literatura), “onde se comia
doces tradicionais brasileiros e se bebia um alcolzinho econômico”.
Dali saiu a
Semana, financiada pela aristocracia paulista mobilizada por Paulo Prado, ele
próprio membro de uma tradicional família de São Paulo. As reuniões ganharam
então os salões da elite – Paulo Prado em Higienópolis, D. Olívia Guedes
Penteado na rua Duque de Caxias, a casa de Tarsila do Amaral na rua Barão de
Piracicaba. “E foi da proteção destes salões que se alastrou pelo Brasil o
espírito destruidor do movimento modernista”, diz ele. Um movimento que via o
povo de longe, como objeto de pesquisa e inspiração, um movimento que tinha
entre seus gurus o futurista italiano Marinetti, um escritor fascista.
Essa festa,
como Mário de Andrade caracterizou o movimento modernista, durou todo o
restante da década de 1920. Depois da Revolução de 1930, tudo mudou – as tendências
ideológicas entre os intelectuais se radicalizaram. Uns tornaram-se abertamente
fascistas, outros aderiram ao comunismo, outros juntaram-se ao governo Getúlio
Vargas –, no esforço de ajudar a desenvolver a cultura brasileira.
Mário de
Andrade foi um desses, tornou-se destacado funcionário da área cultural, tendo
dirigido o Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, em 1935; foi um
dos criadores do Serviço Histórico e Artístico Nacional, do Ministério da
Educação e Cultura, em 1936; criou em 1937 a Sociedade de Etnografia e Folclore
de São Paulo, da qual foi seu primeiro presidente, entidade que fez, pela
primeira vez na América, estudos de cartografia folclórica; organizou o
Congresso da Língua Nacional Cantada, que fixou a pronúncia padrão usada pelo
teatro dramático e pelo canto no Brasil; foi diretor do Instituto de Artes da
Universidade do Distrito Federal, em 1938; foi diretor do Instituto do Livro,
em 1939, e sócio-fundador da Sociedade dos Escritores Brasileiros.
A defesa da
cultura nacional e de sua democratização foi a principal marca da atividade de
Mário de Andrade nesses cargos. Foi por sua iniciativa, por exemplo, que se
construíram em São Paulo as primeiras casas de Cultura Proletária.
O texto que
publicamos a seguir revela essa inquietação e registra a crítica de Mário de
Andrade ao movimento modernista de 1922. Trata-se de alguns trechos da
conferência de 1942, publicada originalmente na Revista do Arquivo Municipal de
São Paulo, janeiro de 1946, volume IV (edição em homenagem a Mário de Andrade),
e republicada em Mário de Andrade. Hoje, organizado por Carlos E. O. Berriel,
editora Ensaio, São Paulo, 1990. Ele revela preocupações extremamente atuais.
José Carlos
Ruy “O espírito modernista reconheceu que si viviamos já de nossa realidade
brasileira, carecia reverificar nosso instrumento de trabalho para que nos
expressássemos com identidade. Inventou-se do dia prá noite a fabulosissima
“lingua brasileira”. Mas ainda era cedo; e a força dos elementos contrários,
principalmente a ausência de órgãos científicos adequados, reduziu tudo a
manifestações individuais. E hoje, como normalidade de língua culta e escrita,
estamos em situação inferior à de cem anos atrás. A ignorância pessoal de
vários fez com que se anunciassem em suas primeiras obras, como padrões
excelentes de brasileirismo estilístico. Era ainda o mesmo caso dos românticos:
não se tratava duma superação da lei portuga, mas duma ignorância dela. Mas
assim que alguns desses prosadores se firmaram pelo valor pessoal admirável que
possuiam (me refiro à geração de 30), principiaram as veleidades de escrever
certinho. E é cômico observar que, hoje, em alguns dos nossos mais fortes
estilistas surgem a cada passo, dentro duma expressão já intensamente
brasileira, lusitanismos sintáxicos ridículos. Tão ridículos que se tornam
verdadeiros erros de gramática! Noutros, esse reaportuguesamento expressional
ainda é mais precário: querem ser lidos alem-mar, e surgiu o problema econômico
de serem comprados em Portugal: enquanto isso, a melhor intelectualidade lusa,
numa liberdade esplêndida, aceitava abertamente os mais exagerados de nós,
compreensiva, sadia, mão na mão.
Teve também os
que, desaconselhados pela preguiça, resolveram se despreocupar do problema...
São os que empregam anglicismos e galicismos dos mais abusivos, mas que
repudiam qualquer ‘me parece’ por artificial! Outros, mais cômicos ainda,
dividiram o problema em dois: nos seus textos escrevem gramaticalmente, mas
permitem que seus personagens, falando, ‘errem’ o português.
Assim, a...
culpa não é do escritor, é dos personagens! Ora, não há solução mais
incongruente em sua aparência conciliatória. Não só põe em foco o problema do
erro de português, como estabelece um divórcio inapelável entre a língua falada
e a língua escrita – bobagem bêbada pra quem souber um naco de filologia. E tem
ainda as garças brancas do individualismo que, embora reconhecendo a
legitimidade da língua nacional, se recusam a colocar brasileiramente um
pronome, pra não ficarem parecendo com Fulano! Estes ensimesmados esquecem que
o problema é coletivo e que, si adotado por muitos, muitos ficavam se parecendo
com o Brasil! (...)
Não tenho a
mínima reserva em afirmar que toda a minha obra representa uma dedicação feliz
a problemas do meu tempo e minha terra. Ajudei coisas, maquinei coisas, fiz
coisas, muita coisa! E no entanto me sobra agora a sentença de que fiz muito
pouco, porque todos os meus feitos derivaram duma ilusão vasta. E eu que sempre
me pensei, me senti mesmo, sadiamente banhado de amor humano, chego no declínio
da vida à convicção de que faltou humanidade em mim. Meu aristocratismo me
puniu. Minhas intenções me enganaram.
Quando muito
fiz de longe umas caretas para a máscara do tempo, o que não me satisfaz Vítima
do meu individualismo, procuro em vão nas minhas obras, e também nas de muitos
companheiros, uma paixão mais temporânea, uma dor mais viril da vida. Não tem.
Tem mais é uma antiquada ausência de realidade em muitos de nós. Estou
repisando o que já disse a um moço... E outra coisa sinão o respeito que tenho
pelo destino dos mais novos se fazendo, não me levaria a esta confissão
bastante cruel, de perceber em quase toda a minha obra a insuficiência do
abstencionismo. Francos, dirigidos, muitos de nós demos às nossas obras uma
caducidade de combate. Estava certo, em princípio. O engano é que nos pusemos
combatendo lençois superficiais de fantasmas. Deveríamos ter inundado a
caducidade utilitária do nosso discurso, de maior angústia do tempo, de maior
revolta contra a vida como está. Em vez: fomos quebrar vidros de janelas,
discutir modas de passeio, ou cutucar os valores eternos, ou saciar nossa
curiosidade na cultura. E si agora percorro a minha obra já numerosa e que
representa uma vida trabalhada, não me vejo uma só vez pegar a máscara do tempo
e esbofeteá-la como ela merece. Quando muito lhe fiz de longe umas caretas. Mas
isto, a mim, não me satisfaz.
Não me imagino
político de ação. Mas nós estamos vivendo uma idade política do homem, e a isso
eu tinha que servir. Mas em síntese, eu só me percebo, feito um Amador Bueno
qualquer, falando ‘não quero’ e me isentando da atualidade por detrás das
portas contemplativas de um convento. Também não me desejaria escrevendo
páginas explosivas, brigando a pau por ideologias e ganhando louros faceis de
um xilindró. Tudo isso não sou eu nem é pra mim. Mas estou convencido de que
devíamos ter nos transformado de especulativos em especuladores. Há sempre
jeito de escorregar num ângulo de visão, numa escolha de valores, no embaçado
duma lágrima que avolumem ainda mais o insuportável das condições atuais do
mundo. Não. Virâmos abstencionistas abstêmios e transcendente (1). Mas por isso
mesmo que fui sinceríssimo, que desejei ser fecundo e joguei lealmente com
todas as minhas cartas à vista, alcanço agora esta consciência de que fomos
bastante inatuais. Vaidade, tudo vaidade...
Tudo o que
fizemos... Tudo o que eu fiz foi especialmente uma cilada da minha felicidade
pessoal e da festa em que vivemos. É aliás o que, com decepção açucarada, nos
explica historicamente. Nós éramos os filhos finais de uma civilização que se
acabou, e é sabido que o cultivo delirante do prazer individual represa as
fôrças dos homens sempre que uma idade morre. E já mostrei que o movimento
modernista foi destruidor. Muitos porém ultrapassâmos essa fase destruidora,
não nos deixamos ficar no seu espírito e igualâmos nosso passo, embora um
bocado turtuveante, ao das gerações mais novas. Mas apesar das sinceras
intenções boas que dirigiram a minha obra e a deformaram muito, na verdade,
será que não terei passeado apenas, me iludindo de existir?... É certo que eu
me sentia responsabilizado pelas fraquezas e as desgraças dos homens. É certo
que pretendi regar minha obra de orvalhos mais generosos, suja-la nas impurezas
da dôr, sair do limbo ‘netrista ne lieta’ da minha felicidade pessoal. Mas pelo
próprio exercício da felicidade, mas pela própria altivez sensualíssima do
individualismo, não me era mais possível renegá-los como um êrro, embora eu
chegue um pouco tarde à convicção da sua mesquinhez.
“Abandonei,
traição consciente, a ficção em favor de estudo que não sou”
A única
observação que pode trazer alguma complacência para o que eu fui, é que eu
estava enganado. Julgava sinceramente cuidar mais da vida que de mim. Deformei,
ninguém não imagina quanto; a minha obra – o que não dizer que si não fizesse
isso, ela fosse milhor... Abandonei, traição consciente, a ficção em favor de
um homem-de-estudo que fundamentalmente não sou. Mas é que eu decidira
impregnar tudo quanto fazia de um valor utilitário, um valor prático da vida,
que fosse alguma coisa mais terrestre que ficção, prazer estético, a beleza
divina.
Mas eis que
chego a êste paradoxo irrespirável: Tendo deformado toda a minha obra por um
anti-individualismo dirigido e voluntarioso, toda a minha obra não é mais que
um hiperindividualismo implacável! E é melancólico chegar assim ao crepúsculo,
sem contar com a solidariedade de si mesmo. Eu não posso estar satisfeito de
mim. O meu passado não é mais meu companheiro. Eu desconfio do meu passado.
Mudar?
Acrescentar? Mas como esquecer que estou na rampa dos cincoenta anos e que os
meus gestos agora já são todos... memórias musculares?... Ex omnibus bonis quae
bomini tribuit natura, nullum melius esse tempestiva morte... O terrível é que
talvez ainda nos seja mais acertada a discrição, a virarmos por ai cacoeteiros
de atualidade, macaqueando as atuais aparências do mundo. Aparências que
levarão o homem por certo a maior perfeição de sua vida. Me recuso a imaginar
na inutilidade das tragédias contemporâneas. O Homo Imbecilis acabará
entregando os pontos à grandeza do seu destino.
Eu creio que
os modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a
ninguém. Mas podemos servir de lição. O homem atravessa uma fase integralmente
política da humanidade. Nunca jamais ele foi tão ‘momentâneo’ como agora. Os
abstencionismos e os valores eternos podem ficar pra depois (2). E apesar da
nossa atualidade, da nossa nacionalidade, da nossa universalidade, uma coisa
não ajudâmos verdadeiramente, duma coisa não participâmos: o amilhoramento
político-social do homem. E esta é a essência mesma da nossa idade.
Si de alguma
coisa pode valer o meu desgôsto, a insatisfação que eu me causo, que os outros
não sentem assim na beira do caminho, espiando a multidão passar. Façam ou se
recusem a fazer arte, ciência, ofícios. Mas não fiquem apenas nisso, espiões da
vida, camuflados em técnicos de vida, espiando a multidão passar. Marchem com
as multidões.
Aos espiões
nunca foi necessária essa ‘liberdade’ pela qual tanto se grita. Nos períodos de
maior escravização do indivíduo, Grécia, Egito, artes e ciências não deixaram
de florescer. Será que a liberdade é uma bobagem?... Será que o direito é uma
bobagem!... A vida humana é que é alguma coisa a mais que ciências, artes e
profissões. E é nessa vida que a liberdade tem um sentido, e o direito dos
homens. A liberdade não é um prêmio, é uma sanção. Que ha-de vir”.
Mário de
Andrade
Notas do
autor:
(1) “Uns
verdadeiros inconscientes”, como já falei uma vez...
(2) Sei que é
impossível ao homem, nem ele deve abandonar os valores eternos, amor, amizade,
Deus, a natureza. Quero exatamente dizer que numa idade humana como a que
vivemos, cuidar dêsses valores apenas e se refugiar neles em livros de ficção e
mesmo de técnica, é um abstencionismo deshonesto e deshonroso como qualquer
outro. Uma covardia como qualquer outra. De resto, a forma política da
sociedade é um valor eterno também.
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