terça-feira, 7 de fevereiro de 2012
Os porquês da fome
Vivemos em um mundo de abundância. Hoje se produz
comida para 12 bilhões de pessoas, segundo dados da Organização das Nações
Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), quando no planeta habitam 7
bilhões. Comida, existe. Então, por quê uma de cada sete pessoas no mundo passa
fome?
A emergência alimentar que afeta mais de 10 milhões
de pessoas no Chifre da África voltou a trazer à tona a fatalidade de uma
catástrofe que não tem nada de natural. Secas, indundações, conflitos bélicos,
contribuem para agudizar uma situação de extrema vulnerabilidade alimentar. Mas
não são os únicos fatores que a explicam.
A situação de fome no Chifre da África não é
novidade. A Somália vive uma situação de insegurança alimentar há 20 anos. E,
periodicamente, os meios de comunicação estremecem os nossos confortáveis sofás
e nos lembram do impacto dramático da fome no mundo. Em 1984, quase um milhão
de pessoas mortas na Etiópia; em 1992, 300 mil somalis morreram por causa da
fome; em 2005, quase cinco milhões de pessoas à beira da morte no Malawi,
apenas por citar alguns casos.
A fome não é uma fatalidade inevitável que afeta
determinados países. As causas da fome são políticas. Quem controla os recursos
naturais (terra, água, sementes) que permitem a produção de comida? A quem
beneficiam as políticas agrícolas e alimentares? Hoje, os alimentos se tornaram
uma mercadoria e sua função principal, nos alimentar, ficou em segundo plano.
A seca é apontada, com a consequente perda de
colheitas e gado, como um dos principais detonantes da fome no Chifre da
África. Mas como se explica que países como os Estados Unidos ou a Austrália,
que sofrem periodicamente com secas severas, não enfrentam situações de fome
extrema? Evidentemente, os fenômenos meteorológicos podem agravar os problemas
alimentares, mas não bastam para explicar as causas da fome. Com relação à
produção de alimentos, o controle dos recursos naturais é chave para entender
quem e para quê se produz.
Em muitos países do Chifre da África, o acesso à
terra é um bem escasso. A compra em massa de solo fértil por parte de investidores
estrangeiros (agroindústria, governos, fundos especulativos...) provocou a
expulsão de milhares de camponeses de suas terras, diminuindo a capacidade
destes países para se autoabastecer. Assim, enquanto o Programa Mundial de
Alimentos tenta dar comida a milhões de refugiados no Sudão, paradoxalmente,
governos estrangeiros (Kuwait, Emirados Árabes Unidos, Coreia... ) compram
terras para produzir e exportar alimentos para suas populações.
Também é preciso lembrar que a Somália, apesar das
secas recorrentes, foi um país autossuficiente na produção de alimentos até o
final dos anos 70. A sua soberania alimentar foi saqueada nas décadas
posteriores. A partir dos anos 80, as políticas impostas pelo Fundo Monetário
Internacional e o Banco Mundial para que o país pagasse a dívida com o Clube de
Paris, forçaram a aplicação de um conjunto de medidas de ajuste. Com relação à
agricultura, estas implicaram uma política de liberalização comercial e
abertura dos mercados, permitindo a entrada em massa de produtos subvencionados,
como o arroz e o trigo, de multinacionais agroindustriais norte-americanas e
europeias, que começaram a vender seus produtos abaixo do preço de custo,
fazendo competição desleal com os produtores locais. As desvalorizações
periódicas da moeda somali geraram também o aumento do preço dos insumos e o
fomento de uma política de monocultivos para a exportação forçou,
paulatinamente, o abandono do campo. Histórias parecidas aconteceram não apenas
nos países da África, mas também na América Latina e Ásia.
O aumento do preço dos cereais básicos é outro dos
elementos apontados como detonantes da fome no Chifre da África. Na Somália, o
preço do milho e do sorgo vermelho aumentou 106% e 180% respectivamente em
apenas um ano. Na Etiópia, o custo do trigo subiu 85% com relação ao ano
anterior. E no Quênia, o milho chegou a um valor 55% superior ao de 2010. Um
aumento que tornou estes alimentos inacessíveis. Mas quais são as razões da
escalada dos preços? Vários indícios apontam para a especulação financeira sobre
as matérias-primas alimentares como uma das causas principais.
O preço dos alimentos é determinado na Bolsa de
Valores, das quais a mais importante à nível mundial é a de Chicago, enquanto
que na Europa, os alimentos são comercializados nas Bolsas de Futuros de
Londres, Paris, Amsterdã e Frankfurt. Mas, hoje em dia, a maior parte da compra
e venda destas mercadorias não corresponde a trocas comerciais reais.
Calcula-se que, nas palavras de Mike Masters, do Hedge Fund Masters Capital
Management, 75% do investimento financeiro no setor agrícola é de caráter
especulativo. Matérias-primas são compradas e vendidas com o objetivo de
especular e fazer negócio, repercutindo em um aumento do preço da comida para o
consumidor final. Os mesmos bancos, fundos de alto risco, companhias de seguro,
que causaram a crise das hipotecas, são os que hoje especulam sobre a comida,
se aproveitando de alguns mercados globais profundamente desregulados e
altamente rentáveis.
A crise alimentar à escala global e a fome no Chifre
da África são o resultado da globalização alimentar a serviço de interesses
privados. A cadeia de produção, distribuição e consumo de alimentos está nas
mãos de umas poucas multinacionais que antepõem seus interesses particulares às
necessidade coletivas, e que ao longo das últimas décadas deterioraram, com o
apoio das instituições financeiras internacionais, a capacidade dos Estados do
sul de decidir sobre suas políticas agrícolas e alimentares.
Voltando ao começo, porque existe fome em um mundo
de abundância? A produção de alimentos se multiplicou por três desde os anos
70, enquanto que a população mundial apenas duplicou desde então. Não
enfrentamos um problema de comida, e sim um problema de acesso. Como dizia o
relator da ONU para o direito à alimentação, Olivier de Schutter, em uma
entrevista ao EL PAÍS: "A fome é um problema político. É uma questão de
justiça social e políticas de redistribuição".
Se queremos acabar com a fome no mundo, é urgente
apostar em outras políticas agrícolas e alimentares que coloquem no centro as
pessoas, suas necessidades, aqueles que trabalham a terra e o ecossistema.
Apostar naquilo que o movimento internacional da Via Campesina chama de
"soberania alimentar", e recuperar a capacidade de decidir sobre o
que comemos. Tomando emprestado um dos lemas mais conhecidos do Movimento 15-M:
é necessária uma "democracia real, já", na agricultura e na
alimentação.
[Autora de "Del campo al plato. Los circuitos
de producción y distribución de alimentos".
Artigo em El País, 30/07/2011. +info: http://esthervivas.wordpress.com]
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